A VERDADE DO EVANGELHO
TEOLOGIA SISTEMÁTICA

Charles Finney

 

AULA 2

 GOVERNO MORAL

 

A lei, num sentido do termo suficientemente popular e também científico para meus propósitos, é uma regra de ação. Em seu significado genérico, é aplicável a todo tipo de ação, seja material, seja mental -- seja inteligente, seja não inteligente -- seja livre, seja necessária.

Lei física é um termo que representa a ordem de seqüência em todas as mudanças que ocorrem sob a lei da necessidade, quer na matéria, quer na mente. Ou seja, todas as mudanças de estado ou de ação que não consistem nos estados ou ações de livre-arbítrio. A lei física é a lei do universo material. É também a lei da mente, desde que os estados e as mudanças sejam involuntários. Todos os estados ou atos mentais que não sejam atos livres e soberanos da vontade devem ocorrer sob a lei física e ser sujeitos a ela. Não se pode ser responsável por eles, a menos que sejam atribuídos à lei da necessidade ou imposição.

A lei moral é uma regra de ação moral com sanções. E aquela regra a que os agentes morais precisam conformar todos os atos voluntários, sendo reforçada por sanções equivalentes ao valor do preceito. É a regra que governa a ação livre e inteligente, em contraposição à lei da necessidade -- de motivações e livre escolha em oposição a uma ação necessária e não inteligente. É a lei da liberdade, em contraste com a lei da necessidade -- de motivação e livre escolha, em oposição à imposição de todo tipo. A lei moral é primeiramente uma norma para regular todas aqueles atos e estados da mente e do corpo que se seguem aos atos livres da lei por uma lei da necessidade. Assim, a lei moral controla estados mentais involuntários e atos exteriores só pelo ato de assegurar a conformidade das ações do livre-arbítrio com seu preceito.

 

Os atributos essenciais da lei moral

1. Subjetividade. Ela é e deve ser uma idéia de razão desenvolvida na mente do indivíduo. É uma idéia ou concepção daquele estado de vontade, ou curso de ação, que está obrigatoriamente num agente moral. Ninguém pode ser um agente moral, ou sujeitado à lei moral, a menos que tenha essa idéia desenvolvida; pois essa idéia é idêntica à lei. É a lei desenvolvida ou revelada dentro dele mesmo, e assim ele se torna "lei para si mesmo", sua única razão para reafirmar sua obrigação de conformar-se com essa idéia.

2. Objetividade. A lei moral pode ser considerada uma regra de obrigação, prescrita pelo Legislador supremo e externa ao eu. Quando assim considerada, é objetiva.

3. Liberdade em contraposição a necessidade. O preceito deve permanecer desenvolvido na mente, como uma regra de obrigação -- uma lei de obrigação moral -- uma regra de opção ou de intenção última, declarando aquilo que um agente moral deve escolher, desejar, pretender. Mas isso não possui, nem deve possuir, o atributo de necessidade em suas relações. Não deve, não pode, possuir qualquer elemento ou atributo de imposição, em algum sentido que traduza conformação inevitável da vontade com seu preceito. Isso confundiria com a lei física.

4. Adequação. Deve ser uma lei da natureza, ou seja, seus preceitos devem prescrever e requerer só os atos da vontade cabíveis à natureza e relações de seres morais, nada mais nem menos; ou seja, tendo por base o valor intrínseco do bem-estar de Deus e do universo, e por condição da obrigação da natureza e as relações dos seres morais, a razão confirma necessariamente, em seguida, a correção e adequação intrínseca de escolher esse bem e de consagrar todo o ser à sua promoção. É isso que se entende por lei da natureza. E a lei ou regra de ação imposta a nós por Deus na natureza e pela natureza que ele nos deu.

5. Universalidade. Sendo iguais as condições e circunstâncias, ela exige, e precisa exigir, o mesmo de todos os agentes morais, não importa o mundo em que se encontrem.

6. Imparcialidade. A lei moral não distingue pessoas -- não privilegia classes. Ela exige o mesmo de todos, sem nenhuma ressalva, exceto o fato de serem agentes morais. Com isso não se quer dizer que o mesmo curso de ação externo seja exigido de todos; mas o mesmo estado de alma em todos -- que todos tenham uma intenção maior -- que todos devotem-se a um fim -- que todos conformem-se inteiramente, de coração e vida, à sua natureza e relações.

7. Praticabilidade. A exigência do preceito deve ser possível para o indivíduo. Aquilo que exige uma impossibilidade natural não é nem pode ser uma lei moral. A verdadeira definição de lei exclui a suposição de que possa, sob alguma circunstância, exigir uma impossibilidade absoluta. Tal exigência não estaria de acordo com a natureza e as relações dos agentes morais e, portanto, a praticabilidade deve sempre ser um atributo da lei moral. Falar da incapacidade de obedecer à lei moral é falar um absurdo.

8. Independência. É uma idéia eterna e necessária da razão divina. É a regra eterna, autônoma da conduta divina, a lei que a inteligência de Deus prescreve para si mesmo. A lei moral, como veremos melhor daqui em diante, não se origina, e não pode originar-se, na vontade de Deus. Ela existe eternamente na razão divina. E a idéia daquele estado de vontade que permanece obrigatoriamente em Deus, sob condição de seus atributos naturais ou, em outras palavras, sob condição de sua natureza. Como lei, é inteiramente independente da vontade de Deus, exatamente como a própria existência dele. Ela é obrigatória também a todos os agentes morais, inteiramente independente da vontade de Deus. Dadas suas natureza e relações e sendo desenvolvida sua inteligência, a lei moral deve ser obrigatória a eles e não cabe a nenhum ser optar por outro caminho. Dadas suas natureza e relações, seguir um curso de conduta adequado à sua natureza e relações é necessário e manifestamente obrigatório, à parte da vontade de qualquer ser.

9. Imutabilidade. A lei moral jamais pode mudar ou ser mudada. Ela sempre exige de todo agente moral um estado de alma e, claro, de conduta, precisamente adequado à sua natureza, e relações. Qualquer que seja sua natureza, quaisquer que sejam sua capacidade e relações, requer-se dele, a todo momento, nada mais nada menos que inteira conformidade com essa natureza, essa capacidade e relações, desde que seja capaz de compreendê-las. Aumentando-se a capacidade, o indivíduo não é com isso considerado capaz de obras de super-rogação -- fazer mais do que exige a lei; pois a lei ainda requer, como sempre, a plena consagração de todo seu ser aos interesses públicos. Se por algum meio, qualquer que seja, sua capacidade é reduzida, a lei moral, sempre e necessariamente coerente consigo mesma, ainda requer o que resta -- nada mais nem menos deve ser consagrado aos mesmos fins que antes. Qualquer coisa que exija conformidade mais ou menos completa, universal e constante do coração e da vida à natureza, capacidade e relações de agentes morais, seja qual for, não é e não pode ser lei moral. Se, portanto, a capacidade é diminuída de algum modo, o indivíduo não se torna com isso incapaz de prestar plena obediência; pois a lei ainda exige e insta que o coração e a vida estejam plenamente conformados com a natureza, capacidade e relações existentes e presentes. Qualquer coisa que requeira mais ou menos que isso não pode ser lei moral. A lei moral invariavelmente fala uma língua. Ela jamais muda suas exigências. "Amarás" (Dt 6.5) ou serás perfeitamente benevolente é sua demanda uniforme e única. Essa demanda jamais varia e jamais pode variar. Ela é tão imutável quanto Deus, e pela mesma razão. Falar de abrandamento ou alteração da lei moral é falar absurdo. Isso é naturalmente impossível. Nenhum ser possui o direito ou o poder de fazê-lo. A suposição desconsidera a própria natureza da lei moral. A lei moral não é um estatuto, um decreto, que tenha sua origem ou fundamento na vontade de algum ser. É a lei da natureza, a lei que a natureza ou constituição de todo agente moral impõe a si próprio e que Deus nos impõe porque é inteiramente adequada a nossa natureza e relações, sendo, portanto, naturalmente obrigatória para nós. É demanda inalterável da razão que todo o ser, o que quer que exista dele em qualquer tempo, deve ser inteiramente dedicado ao máximo bem do ser universal, e por esse motivo Deus exige isso de nós, com todo o peso de sua autoridade.

10. Unidade. A lei moral propõe um único fim maior a ser buscado para Deus e para todos os agentes morais. Todas as suas exigências, em seu espírito, resumem-se e expressam-se em uma palavra: amor ou benevolência. Anuncio aqui só isso. Aparecerá de maneira mais completa daqui em diante. A lei moral é uma idéia pura e simples da razão. É a idéia da consagração perfeita, universal e constante de todo o ser para o máximo bem do ser. Só isso é, e nada mais nem menos pode ser, lei moral; pois só isso, e nada mais nem menos, é um estado do coração e um curso de vida exatamente adequado à natureza e relações de agentes morais, a única definição verdadeira de lei moral.

11. Conveniência. Aquilo que é mais sábio no todo é conveniente. Aquilo que é conveniente no todo é exigido pela lei moral. A verdadeira conveniência e o espírito da lei moral são sempre idênticos. A conveniência pode não estar em harmonia com a letra, mas isso nunca ocorre com o espírito da lei moral. Alei na forma de mandamento é uma revelação ou declaração daquele caminho que é conveniente. É conveniência revelada, como no caso do decálogo, e o mesmo é verdade quanto a todos os preceitos da Bíblia; ela nos revela o que é conveniente. Uma lei ou um mandamento revelado jamais deve ser desconsiderado por nossa opinião de conveniência. Podemos saber com certeza que o que é exigido é conveniente. O mandamento é o julgamento expresso de Deus no caso e revela com certeza inerrante o verdadeiro caminho da conveniência. Quando Paulo diz: "Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas as coisas convém" (1 Co 6.12), é preciso que não o entendamos como se quisesse dizer que todas as coisas, no sentido absoluto, fossem lícitas para ele, ou que algo não conveniente fosse lícito para ele. Mas sem dúvida ele queria dizer que muitas coisas inconvenientes não eram expressamente proibidas pela letra da lei; que o espírito da lei proibia muitas coisas não proibidas expressamente pela letra. Não se deve esquecer jamais que o que simplesmente se exige para o máximo bem do universo é lei. E conveniente. É sábio. O verdadeiro espírito da lei moral exige isso e precisa exigi-lo. Assim, por outro lado, tudo o que é simplesmente inconsistente com o bem máximo do universo é ilegal, insensato, inconveniente e deve ser proibido pelo espírito da lei moral. Mas vamos repetir o pensamento: os preceitos da Bíblia sempre revelam o que é conveniente de verdade, e em hipótese alguma temos liberdade de pôr de lado o espírito de algum mandamento na suposição de que a conveniência o exige. Alguns condenam totalmente a doutrina da conveniência, como se fosse sempre contra a lei de direito. Três filósofos elaboraram sobre a pressuposição de que a lei de direito e a lei da benevolência não são idênticas, mas inconsistentes entre si. Trata-se de erro comum, mas fundamental, o que me leva a observar que: A lei propõe o máximo bem do ser universal como fim e requer que todos os agentes morais consagrem-se à promoção desse fim. Por conseguinte, a conveniência deve ser um de seus atributos. Aquilo que ocupa, no geral, o mais alto grau de utilidade para o universo deve ser exigido pela lei moral. A lei moral deve, pela própria natureza dela, requerer só aquele curso de vontade e ação que ocupa no todo o mais alto grau de utilidade e, por conseguinte, de conveniência. E estranho e absurdo que se tenha defendido que o direito seria obrigatório se necessariamente tendesse para desgraça universal e perfeita ou nela resultasse. Jamais se fez afirmação mais disparatada. A afirmação pressupõe que a lei de direito e a boa vontade não só são distintas, como podem ser antagônicas. Também pressupõe que pode haver leis não adequadas à natureza e relações de agentes morais. Com certeza não se pretende que o curso de ação e de vontade que necessariamente tenda para a desgraça universal e nela resulte possa ser coerente com a natureza e relações de agentes morais. Nada que não promova no todo o máximo bem-estar deles é ou pode ser adequado à sua natureza e relações. A conveniência e o direito estão sempre e necessariamente juntos. Jamais podem ser discrepantes. Aquilo que é no todo mais conveniente é direito; e o que é direito é conveniente no todo.

12. Exclusividade. A lei moral é a única regra possível de obrigação moral. Faz-se em geral distinção entre leis morais, cerimoniais, civis e impostas. Essa distinção é conveniente em alguns aspectos, mas pode confundir, criando a impressão de que algo pode ser obrigatório, em outras palavras, pode ser lei, sem possuir os atributos da lei moral. Nada pode ser lei, no devido sentido do termo, se não for universalmente obrigatório a todos os agentes morais sob as mesmas circunstâncias. E lei porque, e só porque, sob todas as circunstâncias do caso, o curso prescrito é adequado, apropriado, conveniente à sua natureza, relações e circunstâncias. Não pode haver outra regra de ação para agentes morais, a não ser a lei moral ou a lei da benevolência. Todas as outras regras são absolutamente excluídas pela própria natureza da lei moral. Com certeza não pode haver lei que seja ou possa ser obrigatória aos agentes morais, a menos que seja adequada à sua natureza, relações e circunstâncias e fundamentadas nelas. Essa é e deve ser a lei do amor ou da benevolência. Essa é a lei de direito, e nada mais é ou pode ser. Tudo o mais que alegue ser lei e se imponha como obrigação sobre agentes morais deve ser uma imposição e "reduzido a nada".

 

    

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