A VERDADE DO EVANGELHO
TEOLOGIA SISTEMÁTICA

Charles Finney

 

AULA 33

OS PROPÓSITOS DE DEUS

 

Discutindo esta matéria, me empenharei para mostrar, O que eu entendo por propósitos de Deus.

Utilizarei o vocábulo "propósito", nesta discussão, como sinônimo de desígnio, plano, ou intenção. Os propósitos de Deus devem ser supremos, e finais. Isto é, Deus tem e deve ter um final supremo. Ele deve ter o propósito de realizar algo por seu trabalho e providência, que Ele mesmo considere bom, ou de valor para Ele, e para os seres em geral. A isto chamo de seu final supremo. Segue-se a partir dos fatos já estabelecidos, que Deus tem tal finalidade ou propósito, por ser Deus um agente moral, e por ser Ele infinitamente moral e bom. Certamente que não poderia simplesmente ser considerado sábio e bom, se não tivesse intrinsecamente em Si mesmo um final de valor que Ele intenta realizar, através de suas obras de criação e providência. Ao seu propósito de assegurar o seu grandioso e supremo final, chamo de propósito supremo. Os seus propósitos mais próximos, respeitam os meios pelos quais Ele almeja assegurar o seu final. Se Deus tem o propósito de realizar um final, certamente deve propor os meios necessários para esta realização. Os propósitos que dizem respeito aos meios são aquilo que chamo, nesta discussão, de "seus propósitos mais próximos".

 

A diferença entre propósito e decreto.

Acabamos de definir o que é propósito, e esta definição não precisa ser repetida. O termo decreto é utilizado em uma variedade de sentidos. Este termo é utilizado na Bíblia em sinônimos:

1. Como pré-ordenação ou determinação, compromisso.

"Ele estende a sua mão contra o rochedo, e revolve os montes desde as suas raízes. Quando prescreveu uma lei para a chuva e caminho para o relâmpago dos trovões" (Jó 28.9,26).

"Recitarei o decreto: O Senhor me disse: Tu és meu Filho; eu hoje te gerei" (Sl 2.7).

"E os confirmou para sempre e lhes deu uma lei que não ultrapassarão" (SI 148.6).

"Quando punha ao mar o seu termo, para que as águas não trespassassem o seu mando; quando compunha os fundamentos da terra" (Pv 8.29).

"Não me temereis a mim? diz o Senhor; não temereis diante de mim, que pus a areia por limite ao mar, por ordenança eterna, que ele não traspassará? Ainda que se levantem as suas ondas, não prevalecerão; ainda que bramem, não a traspassarão" (Jr 5.22).

"Esta é a interpretação, ó rei; e este é o decreto do Altíssimo, que virá sobre o rei, meu senhor" (Dn 4.24).

2. É utilizado como sinônimo em ordenança, estatuto, lei.

"Todos os príncipes do reino, os prefeitos e presidentes, capitães e governadores tomaram conselho, a fim de estabelecerem um edito real e fazerem firme este mandamento: que qualquer que, por espaço de trinta dias, fizer uma petição a qualquer deus ou a qualquer homem e não a ti, ó rei, seja lançado na cova dos leões. Agora, pois, ó rei, confirma o edito e assina a escritura, para que não seja mudada, conforme a lei dos medos e dos persas, que se não pode revogar.

Da minha parte é feito um decreto, pelo qual em todo o domínio do meu reino os homens tremam e temam perante o Deus de Daniel; porque ele é o Deus vivo e para sempre permanente, e o seu reino não se pode destruir; o seu domínio é até ao fim" (Dn 6.7-8,26).

Este termo tem sido geralmente utilizado por escritores teológicos, como sinônimo de pré-ordenação, compromisso. Decretar, para estes escritores, significa compromissar, ordenar, estabelecer, firmar, fixar, oferecer certeza. Esta classe de escritores também freqüentemente confunde decreto com propósito, e utilizam o termo como significando a mesma coisa. Não vejo nenhuma objeção na utilização do termo decreto, referindo-se a uma certa classe de eventos físicos, como sinônimos juntamente com compromisso, pré-ordenação, fixação, mandado. Porém penso que a utilização deste termo, como tem sido aplicado às ações dos agentes morais, é altamente passível de objeções, e calculado para aprovar a idéia da fatalidade e da necessidade, a respeito das ações dos homens. Parece inadmissível falar de Deus como que decretando as livres ações dos agentes morais, no sentido de fixar, estabelecer, garantir a todos os eventos físicos. O que Ele fixou ou assegurou posteriormente, o fez através de uma lei de necessidades. Os anteriores, isto é, os atos livres, embora existam e sejam certos, contudo não são assim constituídos através de uma lei de destino ou de necessidade; ou por uma ordenança ou decreto que assim os fixem, por não ser possível que fossem de outro modo.

A respeito do governo de Deus, prefiro utilizar o termo propósito, conforme já disse, significando o desígnio de Deus, tanto a respeito do final que Ele almeja, ou que pretende ou se propõe a utilizar para alcançá-los. Eu utilizo o termo decreto como um sinônimo juntamente com o termo mandamento, lei ou ordenança. O primeiro, eu utilizo como a expressão daquilo que Deus tem como propósito ou planos que Ele fará por si mesmo, e por sua própria iniciativa, ou também aquilo que Ele tem como propósito ou plano de realizar através de outros. O último eu utilizo como a expressão da vontade, das ordens, ou da lei de Deus. Ele determina a sua própria conduta e ações de acordo com o primeiro, isto é, com os seus propósitos. Ele requer que as suas criaturas se adeqüem ao segundo, isto é, aos seus decretos ou leis.

Veremos, no lugar próprio, que tanto os seus propósitos e as suas ações, são conformadas ao espírito de seus decretos, ou leis; isto é, que Ele é benevolente em seus propósitos e conduta, assim como requer que as suas criaturas o sejam. Costumo distinguir aquilo que Deus tem como propósito ou plano de realizar por meio de outros e aquilo que estas outras pessoas planejam. O final ou o propósito de Deus é sempre benevolente. Ele sempre planeja o bem. Porém as suas criaturas têm se mostrado egocêntricas, e seus planos são freqüentemente diretamente opostos aos propósitos de Deus, mesmo tratando-se dos mesmos eventos. Veja, por exemplo, os seguintes casos:

"E disse José a seus irmãos: Peço-vos, chegai-vos a mim. E chegaram-se. Então, disse ele: Eu sou José, vosso irmão, a quem vendestes para o Egito. Agora, pois, não vos entristeçais, nem vos pese aos vossos olhos por me haverdes vendido para cá; porque, para conservação da vida, Deus me enviou diante da vossa face. Porque já houve dois anos de fome no meio da terra, e ainda restam cinco anos em que não haverá lavoura nem sega (Gn 45.4-6).

"E José lhes disse: Não temais; porque, porventura, estou eu em lugar de Deus? Vós bem intentastes mal contra mim, porém Deus o tornou em bem, para fazer como se vê neste dia, para conservar em vida a um povo grande" (Gn 50.19-20).

"Ai da Assíria, a vara da minha ira! Porque a minha indignação é como bordão nas suas mãos. Enviá-la-ei contra uma nação hipócrita e contra o povo do meu furor lhe darei ordem, para que lhe roube a presa, e lhe tome o despojo, e o ponha para ser pisado aos pés, como a lama das ruas, ainda que ele não cuide assim, nem o seu coração assim o imagine; antes, no seu coração, intenta destruir e desarraigar não poucas nações. Por isso, acontecerá que, havendo o Senhor acabado toda a sua obra no monte Sião e em Jerusalém, então, visitarei o fruto do arrogante coração do rei da Assíria e a pompa da altivez dos seus olhos" (Is 10.5-7,12).

"E Pilatos lhes respondeu, dizendo: Quereis que vos solte o Rei dos judeus? Porque ele bem sabia que, por inveja, os principais dos sacerdotes o tinham entregado" (Mc 15.9-10).

"Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna" (Jo 3.16).

"A este que vos foi entregue pelo determinado conselho e presciência de Deus, tomando-o vós, o crucificastes e matastes pelas mãos de injustos" (At 2.23).

 

Existe obrigatoriamente um sentido pelo qual os planos de Deus estendem-se a todos os eventos.

1. A razão torna este fato evidente. Os planos dEle devem, em certo sentido, incluir de fato todos os eventos. Ele deve obrigatoriamente conhecer previamente a todos os eventos pela lei da necessidade. Este fato está implícito em sua onisciência. Ele deve ter amadurecido e adotado o seu plano tendo em vista todos os eventos, e em referência a todos os eventos. Ele deve obrigatoriamente ter tido algum propósito ou plano quanto a todos os eventos que Ele previu. Todos os eventos se tornam conhecidos em conseqüência de sua própria atitude de criar; isto é, todos resultam de algum modo, de suas ações, sejam estas direta ou indiretamente, sejam por seu plano ou paciência. Ele também os faz acontecer de modo planejado, ou permite que eles aconteçam sem se interpor com a finalidade de evitá-los. Ele com toda certeza deve saber que estes eventos acontecerão. Ele pode ter positivamente planejado estes acontecimentos, ou deve ter decidido não evitá-los, sabendo que aconteceriam como resultado de erros ou egocentrismo de suas criaturas; ou ainda, sabendo que aconteceriam, não teria nenhum propósito ou plano quanto a estes. Esta última hipótese é completamente impossível. Ele não pode estar indiferente a qualquer que seja o evento. Deus conhece todos os eventos, e deve sempre obrigatoriamente ter algum propósito ou plano a respeito deles.

2. A Bíblia Sagrada representa abundantemente os propósitos de Deus, como, em determinado sentido, estendendo-se a todos os eventos. Por exemplo:

"Ele é a Rocha cuja obra é perfeita, porque todos os seus caminhos juízo são; Deus é a verdade, e não há nele injustiça; justo e reto é" (Dt 32.4).

"Ó Senhor, quão variadas são as tuas obras! Todas as coisas fizeste com sabedoria; cheia está a terra das tuas riquezas" (SI 104.24).

"Visto que os seus dias estão determinados, contigo está o número dos seus meses; e tu lhe puseste limites, e não passará além deles" (Jó 14.5).

"Este é o conselho que foi determinado sobre toda esta terra; e esta é a mão que está estendida sobre todas as nações" (Is 14.26).

"E de um só fez toda a geração dos homens para habitar sobre toda a face da terra, determinando os tempos já dantes ordenados e os limites da sua habitação" (At 17.26).

"Nele, digo, em quem também fomos feitos herança, havendo sido predestinados conforme o propósito daquele que faz todas as coisas, segundo o conselho da sua vontade" (Ef 1.11).

"A este que vos foi entregue pelo determinado conselho e presciência de Deus, tomando-o vós, o crucificastes e matastes pelas mãos de injustos" (At 2.23).

"Porque, verdadeiramente, contra o teu santo Filho Jesus, que tu ungiste, se ajuntaram, não só Herodes, mas Pôncio Pilatos, com os gentios e os povos de Israel, para fazerem tudo o que a tua mão e o teu conselho tinham anteriormente determinado que se havia de fazer" (At 4.27-28).

"E, havendo eles cumprido todas as coisas que dele estavam escritas, tirando-o do madeiro, o puseram na sepultura" (At 13.29).

"Porque se introduziram alguns, que já antes estavam escritos para este mesmo juízo, homens ímpios, que convertem em dissolução a graça de Deus e negam a Deus, único dominador e Senhor nosso, Jesus Cristo" (Jd v.4).

"Porque Deus tem posto em seu coração que cumpram o seu intento, e tenham uma mesma idéia, e que dêem à besta o seu reino, até que se cumpram as palavras de Deus" (Ap 17.17).

"Mas, agora, vos admoesto a que tenhais bom ânimo, porque não se perderá a vida de nenhum de vós, mas somente o navio. Porque, esta mesma noite, o anjo de Deus, de quem eu sou e a quem sirvo, esteve comigo, dizendo: Paulo, não temas! Importa que sejas apresentado a César, e eis que Deus te deu todos quantos navegam contigo. Procurando, porém, os marinheiros fugir do navio e tendo já deitado o batei ao mar, como que querendo lançar as âncoras pela proa, disse Paulo ao centurião e aos soldados: Se estes não ficarem no navio, não podereis salvar-vos" (At 27.22-24,30,31).

"Mas devemos sempre dar graças a Deus, por vós, irmãos amados do Senhor, por vos ter Deus elegido desde o princípio para a salvação, em santificação do Espírito e fé da verdade" (2 Ts 2.13).

"Eleitos segundo a presciência de Deus Pai, em santificação do Espírito, para a obediência e aspersão do sangue de Jesus Cristo: graça e paz vos sejam multiplicadas" (1 Pe 1.2).

"Ele é que cobre o céu de nuvens, que prepara a chuva para a terra e que faz produzir erva sobre os montes; que dá aos animais o seu sustento e aos filhos dos corvos, quando clamam. Quem envia o seu mandamento à terra; a sua palavra corre velozmente. Manda a sua palavra e os faz derreter; faz soprar o vento, e correm as águas" (SI 147.8,9,15-18).

"Eu formo a luz e crio as trevas; eu faço a paz e crio o mal; eu, o Senhor, faço todas essas coisas" (Is 45.7).

"E todos os moradores da terra são reputados em nada; e, segundo a sua vontade, ele opera com o exército do céu e os moradores da terra; não há quem possa estorvar a sua mão e lhe diga: Que fazes?" (Dn 4.35).

"Tocar-se-á a buzina na cidade, e o povo não estremecerá? Sucederá qualquer mal à cidade, e o Senhor não o terá feito?" (Am 3.6).

"Não se vendem dois passarinhos por um ceitil? E nenhum deles cairá em terra sem a vontade de vosso Pai" (Mt 10.29).

"Porque dele, e por ele, e para ele são todas as coisas" (Rm 11.36).

"Nele, digo, em quem também fomos feitos herança, havendo sido predestinados conforme o propósito daquele que faz todas as coisas, segundo o conselho da sua vontade" (Ef 1.11).

"Para que sejais filhos do Pai que está nos céus; porque faz que o seu sol se levante sobre maus e bons e a chuva desça sobre justos e injustos" (Mt 5.45).

"Olhai para as aves do céu, que não semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta. Não tendes vós muito mais valor do que elas?

E, quanto ao vestuário, porque andais solícitos? Olhai para os lírios do campo, como eles crescem; não trabalham, nem fiam. E eu vos digo que nem mesmo Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles. Pois, se Deus assim veste a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, não vos vestirá muito mais a vós, homens de pequena fé?" (Mt 6.26,28,29,30).

"Eu sei, ó Senhor, que não é do homem o seu caminho, nem do homem que caminha, o dirigir os seus passos" (Jr 10.23).

"Não poderei eu fazer de vós como fez este oleiro, ó casa de Israel? diz o Senhor; eis que, como o barro na mão do oleiro, assim sois vós na minha mão, ó casa de Israel" (Jr 18.6).

"Não que sejamos capazes, por nós, de pensar alguma coisa, como de nós mesmos; mas a nossa capacidade vem de Deus" (2 Co 3.5).

"Tu só és Senhor, tu fizeste o céu, o céu dos céus e todo o seu exército, a terra e tudo quanto nela há, os mares e tudo quanto neles há; e tu os guardas em vida a todos, e o exército dos céus te adora" (Ne 9.6).

"E, se o profeta for enganado e falar alguma coisa, eu, o Senhor, persuadi esse profeta; e estenderei a mão contra ele e destruí-lo-ei do meio do meu povo de Israel" (Ez 14.9).

"Naquela mesma hora, se alegrou Jesus no Espírito Santo e disse: Graças te dou, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste essas coisas aos sábios e inteligentes e as revelaste às criancinhas; assim é, ó Pai, porque assim te aprouve" (Lc 10.21).

"Por isso, não podiam crer, pelo que Isaías disse outra vez:

Cegou-lhes os olhos e endureceu-lhes o coração, a fim de que não vejam com os olhos, e compreendam no coração, e se convertam, e eu os cure. Isaías disse isso quando viu a sua glória e falou dele" (Jo 12.39-41).

"Logo, pois, compadece-se de quem quer e endurece a quem quer" (Rm9.18).

"E com todo engano da injustiça para os que perecem, porque não receberam o amor da verdade para se salvarem. E, por isso, Deus lhes enviará a operação do erro, para que creiam a mentira, para que sejam julgados todos os que não creram a verdade; antes, tiveram prazer na iniqüidade" (2 Ts 2.10-12).

Estas passagens mostram o teor geral das Escrituras sobre este tema.

 

O diferente sentido em que Deus propõe diferentes eventos.

1. Ele deve ter proposto de forma positiva o grandioso final de todas as suas obras, isto é, de modo absoluto. Este final é o seu bem e o mais alto bem do universo, sobre o que Ele colocou o seu próprio coração para o assegurar. Sem dúvida Ele pretendeu ou planejou, de modo apropriado, assegurar este final. Esta deve ter sido a sua suprema intenção ou propósito. Este fim foi sem dúvida objeto direto de sua escolha.

2. Deus deve ter também, em algum sentido, proposto todos os meios necessários para alcançar este resultado. Tais ações, que devem ter sido naturalmente encaminhadas em direção a este resultado, ou que devem ter ocorrido por conta de sua própria natureza, devem ter sido naturalmente propostas por Ele; e isto no sentido de que Ele se deleitou nelas, e as escolheu por causa de sua natureza, ou por causa da relação natural delas com o grandioso final que propôs realizar por meio delas. Observe que o final em questão é um final supremo, o qual é motivo de deleite e que foi escolhido por suas próprias características. Este final é o mais alto bem ou bem estar dEle mesmo, e do universo da existência consciente.

Este fato foi mostrado de forma suficiente em lições anteriores; além dele ser conseqüência da necessidade, a partir da natureza e dos atributos de Deus. Se isto não fosse assim, Ele não seria nem sábio e nem bom. Uma vez que Ele se deleitou neste supremo final por causa de seu próprio valor ou características, e o propôs tendo um propósito positivo, Ele também deve ter obrigatoriamente escolhido e se deleitado nos meios necessários. Ele deve ter criado o universo, tanto por uma questão de decisão como de cuidado, e estabeleceu as suas leis, com referência direta ao final que havia proposto, e também por causa deste final que se propôs a realizar. A finalidade foi valiosa em si mesma, e por esta razão foi escolhida. Os meios necessários foram realmente tão valiosos quanto o final que deles dependeu. Este valor, embora real, por causa de sua tendência e resultados naturais, não é supremo, porém relativo; isto é, ele não é valioso em si mesmo, como o final almejado o é; porém são os meios necessários à realização deste final, e são realmente valiosos pelo fato deste final depender deles. Deste modo a nossa comida, por exemplo, não é valiosa em si mesma, porém é o meio necessário para o prolongamento da nossa vida. Portanto, embora não se trate de um bem supremo, trata-se de um bem de realmente grande valor, por causa da dependência natural que o fim tem deste bem. Estimamos os meios naturalmente necessários para o asseguramento de um valioso final, como tão valiosos quanto o próprio final, embora este valor não seja absoluto, mas relativo. Somos tão acostumados a atribuir aos meios o mesmo valor que estimamos ter o final por eles sustentado, que temos a tendência de livremente considerá-los e deles falarmos como se fossem valiosos em si mesmos, quando de fato o valor deles não é absoluto, mas relativo. Deus deve certamente ter tido o propósito de assegurar a obediência às leis do universo, até onde Ele sabiamente poderia fazê-lo. Estas leis foram estabelecidas por causa do final a que tendiam, e Deus deve ter considerado a obediência a estas como de real valor, embora não de valor supremo, igual ao valor do final, e para a realização daquilo para que foram ordenadas. Ele deve ter se agradado da obediência a estas leis por causa do final, e deve ter o propósito de assegurar esta obediência até onde poderia fazê-lo, em termos da natureza das coisas. Isto é, até onde Ele o pudesse fazer sabiamente. Uma vez que a lei moral é uma regra para o governo dos agentes morais livres, é concebível que, em alguns casos, esta lei seja violada por aqueles que estejam sujeitos a ela, a menos que Deus tenha reservado meios para evitá-lo. Isto introduziria um mal de maior magnitude do que seria a violação da lei nas instâncias que estão sendo consideradas. É de se conceber que, em alguns casos, Deus deveria ser capaz de evitar a violação de suas leis, como se fosse para sobre o todo assegurar um bem maior, através da introdução de tal mudança às suas regras e medições de sua administração; ou então que Ele colocasse a sua administração sob um formato que de todo o modo evitasse a violação de qualquer uma de suas leis. Neste caso, Ele deveria considerar a violação como o menor dentre os males, e sofrê-la ao invés de mudar a organização de seu governo. Ele deve sinceramente deplorar e aborrecer estas violações da lei, e ainda deve ver como não sábio evitá-las, por causa das medidas necessárias para evitá-las resultarem em um mal de magnitude ainda maior. Ele deve ter proposto tolerar estas violações, e tomar o problema para evitá-lo, até onde fosse possível, para a promoção do final que Ele tinha em vista, ao invés de interpor para evitá-lo. Deus não teve o propósito de que estas violações existissem, mas somente as previu, e o seu propósito foi o de não evitá-las, mas, pelo contrário, suportar que elas ocorressem e evitá-las para o bem, até onde isto fosse praticável. Estes eventos ou violações da lei, não têm nenhuma tendência natural para promover o mais alto bem estar de Deus e do universo, porém possuem em si mesmos uma tendência diretamente oposta. Contudo, Deus poderia de tal maneira evitá-los, mas estas ocorrências seriam um mal menor do que as mudanças que seriam necessárias para evitá-los. Portanto Ele deve ter planejado apenas suportar as violações da lei, enquanto deve ter designado produzir ou proteger a obediência à lei.

3. Já vimos que Deus e os homens têm diferentes motivos em relação ao mesmo evento, como por exemplo no caso dos irmãos de José, que fizeram a seguinte alusão: "E disse José a seus irmãos: Peço-vos, chegai-vos a mim. E chegaram-se. Então, disse ele: Eu sou José, vosso irmão, a quem vendestes para o Egito. Agora, pois, não vos entristeçais, nem vos pese aos vossos olhos por me haverdes vendido para cá; porque, para conservação da vida, Deus me enviou diante da vossa face.

Porque já houve dois anos de fome no meio da terra, e ainda restam cinco anos em que não haverá lavoura nem sega" (Gn 45.4-6).

Também no caso do rei da Assíria: "Ai da Assíria, a vara da minha ira! Porque a minha indignação é como bordão nas suas mãos. Enviá-la-ei contra uma nação hipócrita e contra o povo do meu furor lhe darei ordem, para que lhe roube a presa, e lhe tome o despojo, e o ponha para ser pisado aos pés, como a lama das ruas, ainda que ele não cuide assim, nem o seu coração assim o imagine; antes, no seu coração, intenta destruir e desarraigar não poucas nações. Por isso, acontecerá que, havendo o Senhor acabado toda a sua obra no monte Sião e em Jerusalém, então, visitarei o fruto do arrogante coração do rei da Assíria e a pompa da altivez dos seus olhos" (Is 10.5-7,12).

E também: "Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna" (Jo 3.16).

"A este que vos foi entregue pelo determinado conselho e presciência de Deus, tomando-o vós, o crucificastes e matastes pelas mãos de injustos" (At 2.23).

Tanto estes, como outros exemplos, mostram que os agentes malignos se comportam freqüentemente, e sempre, alimentando intenções para a sua conduta, muito diferentes das intenções que Deus tem ao suportá-los. Eles têm em vista um objetivo egoísta, ou fazem o que fazem por razões egoístas. Deus, pelo contrário, tem em vista um final benevolente, quando não se interpõe para evitar que eles pequem; isto é, Ele odeia o pecado deles pois este tem em si mesmo a tendência de destruir ou de derrotar o grande final da benevolência. Porém prevendo antecipadamente que o pecado, a despeito de sua tendência maligna, seria tão rejeitado, como se em relação ao todo resultasse em um mal menor do que as mudanças necessárias para evitá-lo, Ele de modo benevolente prefere suportá-lo do que interpor-se para evitá-lo. Deus poderia, sem dúvida, preferir que estes obedecessem perfeitamente, sob as circunstâncias em que estão, porém logo teria que suportar que pecassem, ao invés de mudar as circunstâncias de modo a evitar este pecado; este último seria, considerando todos os fatores envolvidos, o maior dentre os dois males. Deus, então, sempre suporta que as suas leis sejam violadas, pois Ele não pode, de modo benevolente, evitá-lo sob estas circunstâncias. Ele suporta esta situação por ser benevolente. Porém o pecador freqüentemente possui razões egoístas.

4. A Bíblia nos informa, que Deus é capaz de extrair o bem até mesmo do mal, no sentido de que Ele rejeita o pecado para promover a sua própria glória, e o bem dos seres:

"Porque a cólera do homem redundará em teu louvor, e o restante da cólera, tu o restringirás" (SI 76.10).

"E, se a nossa injustiça for causa da justiça de Deus, que diremos? Porventura, será Deus injusto, trazendo ira sobre nós? (Falo como homem)

Mas, se pela minha mentira abundou mais a verdade de Deus para glória sua, por que sou eu ainda julgado também como pecador? E por que não dizemos (como somos blasfemados, e como alguns dizem que dizemos): Façamos males, para que venham bens? A condenação desses é justa" (Rm 3.5,7-8).

"Veio, porém, a lei para que a ofensa abundasse; mas, onde o pecado abundou, superabundou a graça" (Rm 5.20).

"E sabemos que todas as coisas contribuem juntamente para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados por seu decreto" (Rm 8.28).

5. A Bíblia também nos informa que Deus não tem a intenção de que o pecado seja produzido em sua criação e providência; isto é, que a existência do pecado, não é o propósito dEle no sentido de planejá-lo para garanti-lo e promovê-lo, na administração de seu governo. Ainda em outras palavras, o pecado não é o objeto de um propósito positivo por parte de Deus. Ele existe apenas por ser tolerado, e não por ser algo que naturalmente tenda a assegurar o grandioso final planejado por Deus; e que portanto é por Ele valorizado por conta do esforço que promove, à medida que está sujeito à lei.

"Furtareis vós, e matareis, e cometereis adultério, e jurareis falsamente, e queimareis incenso a Baal, e andareis após outros deuses que não conhecestes, e então vireis, e vos poreis diante de mim nesta casa, que se chama pelo meu nome, e direis: Somos livres, podemos fazer todas estas abominações?" (Jr 7.9-10).

"Porque Deus não é Deus de confusão, senão de paz, como em todas as igrejas dos santos" (1 Co 14.33).

"Ninguém, sendo tentado, diga: De Deus sou tentado; porque Deus não pode ser tentado pelo mal e a ninguém tenta. Mas cada um é tentado, quando atraído e engodado pela sua própria concupiscência. Depois, havendo a concupiscência concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, sendo consumado, gera a morte. Não erreis, meus amados irmãos. Toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não há mudança, nem sombra de variação" (Tg 1.13-17).

"Mas, se tendes amarga inveja e sentimento faccioso em vosso coração, não vos glorieis, nem mintais contra a verdade. Essa não é a sabedoria que vem do alto, mas é terrena, animal e diabólica. Porque, onde há inveja e espírito faccioso, aí há perturbação e toda obra perversa. Mas a sabedoria que vem do alto é, primeiramente, pura, depois, pacífica, moderada, tratável, cheia de misericórdia e de bons frutos, sem parcialidade e sem hipocrisia" (Tg 3.14-17).

"Porque tudo o que há no mundo, a concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a soberba da vida, não é do Pai, mas do mundo" (1 Jo 2.16).

A obediência à lei é um objeto de propósito positivo. Deus tem o propósito de promovê-lo, e utiliza os meios compatíveis com este propósito. O pecado ocorre incidentalmente, no tocante aos propósitos de Deus. Não é necessário que seja, e sem dúvida não é o objeto do plano ou do propósito positivo, mas ele ocorre porque não é possível que seja sabiamente evitado. Deus utiliza meios para promover a obediência. Porém os agentes morais, no exercício de seu livre arbítrio, freqüentemente desobedecem a despeito de toda a indução em sentido contrário, aquilo que Deus sabiamente coloca diante deles. Deus jamais coloca de lado a liberdade dos agentes morais para evitar que estes pequem, e nem mesmo para assegurar a obediência destes. A Bíblia em todas as suas passagens, representa o homem agindo livremente sob o governo e a universal providência de Deus, e representa o pecado como o resultado do, ou consistindo do abuso desta liberdade.

"Então, disseram uns aos outros: Na verdade, somos culpados acerca de nosso irmão, pois vimos a angústia de sua alma, quando nos rogava; nós, porém, não ouvimos; por isso, vem sobre nós esta angústia" (Gn 42.21).

"Mas endureceu Faraó ainda esta vez seu coração e não deixou ir o povo" (Êx 8.32).

"Então, Faraó mandou chamar a Moisés e a Arão e disse-lhes: Esta vez pequei; o Senhor é justo, mas eu e o meu povo, ímpios" (Êx 9.27).

"Então, Faraó se apressou a chamar a Moisés e a Arão e disse: Pequei contra o Senhor, vosso Deus, e contra vós.

Agora, pois, peço-vos que perdoeis o meu pecado somente desta vez e que oreis ao Senhor, vosso Deus, que tire de mim somente esta morte" (Êx 10.16-17).

"Os céus e a terra tomo, hoje, por testemunhas contra ti, que te tenho proposto a vida e a morte, a bênção e a maldição; escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua semente" (Dt 30.19).

"Porém, se vos parece mal aos vossos olhos servir ao Senhor, escolhei hoje a quem sirvais: se os deuses a quem serviram vossos pais, que estavam dalém do rio, ou os deuses dos amorreus, em cuja terra habitais; porém eu e a minha casa serviremos ao Senhor" (Js 24.15).

"E a ira do Senhor se tornou a acender contra Israel, e ele incitou a Davi contra eles, dizendo: Vai, numera a Israel e a Judá. E o coração doeu a Davi, depois de haver numerado o povo, e disse Davi ao Senhor: Muito pequei no que fiz; porém agora, ó Senhor, peço-te que traspasses a iniqüidade do teu servo; porque tenho procedido mui loucamente" (2 Sm 24.1,10).

"Filho meu, se os pecadores, com blandícias, te quiserem tentar, não consintas. Porquanto aborreceram o conhecimento e não preferiram o temor do Senhor; não quiseram o meu conselho e desprezaram toda a minha repreensão. Portanto, comerão do fruto do seu caminho e fartar-se-ão dos seus próprios conselhos" (Pv 1.10,29-31).

"O coração do homem considera o seu caminho, mas o Senhor lhe dirige os passos" (Pv 16.9).

As seguintes considerações parecem ser verdadeiras com respeito aos propósitos de Deus, conforme são ensinadas tanto pela razão como pela revelação:

(1) Que os propósitos de Deus estendem-se, sob certo sentido, a todos os eventos.

(2) Que Deus, de uma maneira positiva e como um todo, propõe que o final de cada ser seja o mais alto bem.

(3) Que Ele tem ordenado leis sábias e saudáveis, como meios necessários para garantir este fim.

(4) Que Ele positivamente propõe assegurar a obediência a estas leis até onde lhe é possível fazê-lo sabiamente, e utiliza meios para cumprir este objetivo.

(5) Que Deus jamais, e de modo algum, planeja assegurar positivamente qualquer desobediência à sua lei, e não utilizaria quaisquer meios para isto; mas que Ele somente se propõe a suportar violações à sua lei ao invés de evitá-las. Ele tem antecipadamente ciência destas violações, através de seu poder de indeferi-las. Ele é capaz de evitar a violação resultante de um tão grande mal, bem como de fazer a mudança necessária para que este mal seja evitado. Ou, em outras palavras, Deus vê que Ele mesmo é capaz de assegurar o maior bem para com o todo, ao suportar a violação de sua lei, sob as circunstâncias em que estas violações ocorrem; e que Ele poderia também, interpondo-se, evitá-las. Isto não é o mesmo que dizer, que o pecado seja um meio necessário para que o supremo bem seja alcançado. Porque se todos os agentes morais obedecessem perfeitamente, sob circunstâncias idênticas àquelas em que desobedecem, isto deveria resultar, e sem dúvida resultaria, no mais alto bem possível. Porém Deus, prevendo que seria mais adequado ao mais alto bem, suportar que alguns pecassem, ao invés de mudar as circunstâncias para evitá-lo, propôs suportar o pecado deles, e rejeitar o pecado em prol do bem; porém Deus jamais teve o propósito de produzir o pecado, e nem mesmo utilizou meios com este intento.

 

 

 

A vontade revelada de Deus jamais é inconsistente com o seu propósito secreto.

Tem sido comum alguns representarem o pecado como sendo a ocasião necessária, ou a condição, ou os meios, para o alcance do mais alto bem, no sentido de que em relação ao todo, Deus realmente prefira, secretamente, o pecado à santidade em cada caso em que este exista; que enquanto Ele proibiu o pecado sob todas as circunstâncias, sob a dor da morte eterna, contudo por ser esta a ocasião, a condição necessária, ou os meios para que se alcance o bem maior, que Deus realmente prefira a existência do pecado ao invés da santidade em cada caso em que este exista. Estas pessoas alegam que, como já foi dito, o pecado existe. E que portanto Deus não o evitou. E que Ele, porém, sempre foi capaz e poderia tê-lo evitado, se sobre o todo não o preferisse ao invés da santidade, nas circunstâncias em que ele ocorre. A existência do pecado, portanto, como alguns erroneamente dizem, é a prova conclusiva de que Deus secretamente o prefere em relação à santidade, em cada caso em que este exista. Porém estas afirmações não têm sentido. Não se segue, a partir da existência do pecado, que Deus prefira o pecado à santidade nas circunstâncias em que este ocorre; mas sim que Ele somente prefere o pecado se, para evitá-lo, forem necessárias mudanças nas circunstâncias que Ele anteriormente planejou. Suponhamos que eu requeira que o meu filho faça algo. Eu sei que ele o fará, se eu permanecer em casa e lhe der condições para fazê-lo. Porém também sei que, se eu me ausentar de casa, meu filho não o fará. Agora, eu preferiria que ele agisse conforme as minhas ordens, e consideraria a sua desobediência como um grande mal; porém eu ainda o consideraria como um mal menor para mim, do que eu ter que permanecer em casa, e ter que ficar vigiando o meu filho. Devo ter razões corretas para supor isto, sob as devidas circunstâncias, de que um bem maior poderia ser assegurado em relação ao todo, através de minha saída de casa, embora a desobediência de meu filho fosse uma conseqüência menor do que a minha permanência em casa, prevenindo a desobediência dele. A benevolência, portanto, requereria que eu saísse de minha casa.

Porém o meu filho deveria concluir, a partir do ato de minha saída, que sob estas circunstâncias, eu pensasse e preferisse secretamente a sua desobediência ao invés de sua obediência; sob idênticas circunstâncias em que lhe dei a ordem, a conclusão de meu filho seria correta? Certamente que não! Tudo o que ele poderia concluir a partir de minha atitude de deixá-lo, tendo o conhecimento de que ele me desobedeceria se eu o deixasse, seria que, embora eu considerasse a sua desobediência como um grande mal, contudo considerei que permanecer em casa seria um mal maior.

Do mesmo modo, devemos encarar o fato da existência do pecado. Deus é sincero ao proibi-lo. Deus preferiria muito mais que o pecado não existisse. Tudo o que podemos concluir pelo fato de Deus não evitar o pecado é que, embora Ele considere a existência do pecado como um grande e verdadeiro mal, contudo, como um todo, Ele o considera como um mal menor do que o mal que resultaria de uma mudança tão grande em seu governo, que seria necessária para evitar este mal. Deus é portanto completamente e infinitamente sincero quando requer a obediência, e quando proíbe a desobediência, e o seu propósito secreto está estritamente de acordo coma sua vontade que foi revelada.

Se a lei moral fosse universalmente obedecida, sob as circunstâncias em que todos os agentes morais existem, ninguém poderia dizer que isto não seria o melhor para o universo; este fato agradaria mais a Deus do que a desobediência, sob as mesmas circunstâncias. Também não é justo concluir que, em relação ao todo, Deus prefira o pecado à santidade, onde quer que este ocorra, pelo fato de Ele não evitar que o pecado ocorra. Como já foi dito, tudo o que se pode concluir a partir do fato de Deus não impedir que os pecados aconteçam é que, seja sob quais forem as condições, Ele jamais preferiu e nem preferirá o pecado à santidade, mas prefere que o agente peque e que as conseqüências sejam assumidas, do que introduzir em seu governo as mudanças de procedimento que pudessem evitar completamente o pecado. Ou deve-se ainda dizer que o sistema atual é o melhor que a infinita sabedoria poderia inventar e executar, não por causa do pecado, mas apesar dele, apesar do pecado ser um mal acidental anteriormente previsto. Afirmar que qualquer ser pode pecar, com a finalidade de promover o bem supremo, é uma palpável contradição e uma afirmação absurda. Este fato se tornará evidente se considerarmos:

1. Que admite-se de todos os modos que a benevolência é uma virtude.

2. Que a benevolência consiste em desejar o bem, ou o mais alto bem do ser, como a finalidade suprema.

3. Que é dever de todos, obrigatoriamente, desejar tanto o bem final, como os meios necessários para promovê-lo.

4. Que o direito e a benevolência estão freqüentemente juntos, isto é, que aquilo que é benevolente deve ser sempre correto, e não pode de modo algum estar errado.

5. Que consequentemente, jamais pode ser pecado escolher o mais alto bem dos seres, com todas as ocasiões, condições, e meios necessários para promovê-lo.

6. E impossível, portanto, que um ser peque, ou que consinta com o pecado como ocasião, condição ou meios, ou ainda desejando promover através do pecado o mais alto bem dos seres; porque este plano significaria virtude, e não pecado. Se toda a virtude consiste em benevolência, ou não, ainda deve ser admitida que todas as formas de virtude devem ser consistentes com a benevolência, a menos que seja admitido que possa existir uma lei de direito inconsistente com, e oposta à lei da benevolência. Porém isto seria admitir que duas leis morais deveriam ser opostas entre si; o que seria admitir que um agente moral deveria estar sob a obrigação de obedecer ao mesmo tempo a duas leis opostas, o que é uma contradição. Deste modo parece que não é possível que exista uma lei de direito que seja oposta, ou separada da lei da benevolência. A benevolência e o direito devem sempre estar juntos. Se isto é assim, segue-se que seja o que for que a benevolência demande, não pode estar errado, mas deve obrigatoriamente estar correto. Mas a lei da benevolência demanda não somente a escolha do mais alto bem do ser como um fim, mas também demanda a escolha de todas as ocasiões, condições e meios necessários e conhecidos, com a finalidade de promover este fim.

É então naturalmente impossível pecar, quando se utilizam os meios planejados e conhecidos como necessários para a promoção da finalidade da benevolência. É portanto naturalmente impossível fazer o mal, ou pecar, para que o bem venha, ou com o desígnio de promover através destes, o bem.

Se aqueles que detêm este direito e a benevolência são opostos, e se um agente moral pode pecar tendo uma benevolente intenção, observe o que esta doutrina favorece, e que retira o máximo que pode do meio de um absurdo. O fato é que, se desejar o maior bem do ser é sempre algo virtuoso, deve ser sempre correto desejar as ocasiões, condições e meios para alcançar este fim. E portanto uma contradição dizer que o pecado pode estar entre as ocasiões, condições e meios; isto é, que qualquer um poderia pecar tendo através deste a pretensão de promover o mais alto bem. Porém não é pretendido pelos adeptos deste dogma, que o pecado sustenha ao mais alto bem as mesmas relações que a santidade sustem. A santidade tem a tendência natural de promover o mais alto bem; porém a suposição ora sob consideração é que o pecado é odioso em si mesmo, e se portanto os agentes morais devem ser desgostados e não satisfeitos, e que a sua tendência natural é derrotar a finalidade do governo moral, e evitar, ao invés de promover o mais alto bem; mas Deus o prevê, a despeito da natureza intrinsecamente odiosa e injuriosa do pecado. Ele pode revogá-lo para fazer dele a condição, a ocasião, ou o instrumento do mais alto bem dEle mesmo e de seu universo. E que por esta razão, Ele realmente se agrada que isto ocorra em relação ao todo, preferindo a existência da santidade em cada ocorrência, ao invés do pecado. A suposição é que o pecado, em sua própria natureza, seja infinitamente odioso e abominável para Deus, e perfeitamente odioso para todos os agentes morais santificados, embora seja a ocasião de estimular ao desenvolvimento e exercício tais emoções e sentimentos em Deus e nos seres santos. Tais modificações da benevolência realmente mais do que compensam por todo o desgosto e emoções dolorosas resultantes aos seres santificados; e por todo o remorso, agonia, desespero e sofrimento interminável, que resulta aos pecadores.

Não é suposto por ninguém que eu conheça, que o pecado naturalmente tenda a promover o mais alto bem, mas que somente Deus seja capaz de evitar e agir contra a tendência natural do pecado, e Ele o faz, com o objetivo de fazer dele a ocasião ou a condição de um bem maior, que seria a santidade em lugar do pecado. Agora, em resposta a isto, eu diria, que não pretendo determinar a que extensão Deus é capaz de evitar e agir contra o mal natural e a injuriosa tendência do pecado, e o fará. É certamente o bastante dizer que Deus o proíbe, e que é impossível que as criaturas possam saber que o pecado é a ocasião, ou condição ou o meio necessário para o alcance do mais alto bem.

Se o pecado é por Deus conhecido como a ocasião, condição ou o meio necessário para que seja atingido o mais alto bem para Ele mesmo e para o universo, seja o pecado o que for em si mesmo, contudo, visto sob a perspectiva de suas relações, deve ser considerado por Ele como de infinito valor, uma vez que é a condição indispensável do infinito bem. De acordo com esta teoria, o pecado, em cada instância em que existe, é e deve ser considerado por Deus como de infinitamente maior valor do que a santidade. Ele deve então, em relação o todo, desfrutar de infinita complacência. Porém este fato me leva a considerar os principais argumentos pelos quais esta teoria é supostamente mantida. E dito, por exemplo:

(1) Que o mais alto bem do universo e dos agentes morais está condicionado à revelação dos atributos e do caráter de Deus para com eles; que exceto para com o pecado, estes atributos e ao menos alguns deles, jamais poderiam ter sido revelados de tal modo que sem o pecado não haveria ocasião para que estes fossem mostrados ou manifestos; que nem a justiça e nem a misericórdia, nem a paciência, nem a auto-renúncia, nem a mansidão, poderiam ter encontrado ocasião para as suas manifestações e exercícios, se o pecado jamais tivesse existido.

A isto respondo, que o pecado realmente tornou adequada a ocasião, para uma gloriosa manifestação da perfeição moral de Deus. A partir daí vemos que a perfeição de Deus o capacita a evitar grandemente o pecado, e trazer o bem a partir de uma situação má. Porém não estamos autorizados a inferir neste assunto, opinando que Deus não poderia ter revelado estes atributos às suas criaturas sem o exercício do pecado. Também não podemos dizer que estas revelações seriam necessárias para a mais alta perfeição e alegria do universo, se os agentes morais tivessem obedecido perfeita e uniformemente. Quando consideramos o que são os atributos de Deus, é fácil ver que devem existir miríades de atributos morais em Deus, os quais não são possuídos por nenhuma criatura, ou sobre os quais qualquer criatura jamais possuirá sequer o conhecimento; e o conhecimento daquilo que não é de modo algum essencial para a mais alta perfeição e alegria do universo das criaturas. Os atributos morais de Deus são originários somente de sua benevolência, existindo e sendo contemplados em seus vários relacionamentos com o universo dos seres. A benevolência em qualquer ser, deve obrigatoriamente possuir tantos atributos quantos forem possíveis os relacionamentos, sob os quais podem ser contemplados; e levantando-se as situações adversas, estes atributos devem permanecer firmes e em exercício. Não é de modo algum provável que todos os atributos da benevolência, seja no Criador ou nas criaturas, já tenham encontrado todas as ocasiões para o seu exercício, e talvez jamais as encontrarão. À medida que novas ocasiões se levantam impactando toda a eternidade, a benevolência desenvolverá novos e impactantes atributos, manifestando-se sob infindáveis formas e variedades de amabilidades. É impossível exaurir toda a sua capacidade de desenvolvimento.

Em Deus, a benevolência é infinita. As criaturas jamais poderão conhecer todos os atributos da benevolência, e nem sequer se aproximar de conhecer de perto mais do que já se conhece atualmente. Não existe nenhuma finalidade, para a sua capacidade de desenvolver o exercício de novas formas de beleza e amor. É verdade que Deus tem tomado a ocasião para mostrar a glória de sua benevolência através da existência do pecado. Ele tem aproveitado a ocasião, embora esta seja pesarosa em si mesma, para manifestar alguns dos atributos de sua benevolência através do exercício destes. Também é verdadeiro que não podemos saber como ou por quais meios Deus poderia ter revelado estes atributos, se o pecado não existisse; e também é verdadeiro que não podemos saber se tal revelação seria possível sem a existência do pecado; e nem que, a não ser pelo pecado, a revelação teria sido necessária para o maior bem do universo.

Deus proíbe o pecado, e requer a santificação universal. Ele deve obrigatoriamente ser sincero neste assunto, como o é em todos os assuntos. Porém o pecado existe. Por acaso deveríamos dizer que Ele secretamente escolhe que deve ser realmente preferível, embora secretamente, existência do pecado à santidade, nas circunstâncias em que o pecado ocorre? Ou deveríamos assumir, que o pecado é maligno e que Deus o considera como tal, mas que Ele não pode sabiamente evitá-lo? Ou seja, que se Deus o evitasse, introduziria ainda um mal maior? O pecado é um mal, e um grande mal, contudo ainda é o menor dentre os dois males; isto é, suportar a ocorrência do pecado, sob determinadas circunstâncias, é um mal menor do que tal mudança de circunstâncias que seriam ocasionadas, por tentar evitar o pecado. Isto é tudo o que podemos com justiça inferir a partir da existência do pecado. Assim a sinceridade de Deus permanece desimpedida, e sustem a sua consistência, bem como a consistência e integridade de sua lei. Assumir uma suposição oposta representaria Deus e a lei como infinitamente enganosos.

(2) Já foi dito que a Bíblia sustem a suposição de que o pecado é o meio necessário para o mais alto bem. Confio que as passagens que já foram citadas sejam suficientes para provar que esta afirmação é falsa.

(3) É dito que representar o pecado como não sendo o meio pelo qual se alcança o mais alto bem, e representar a Deus como alguém que não seja capaz de evitá-lo, é o mesmo que representar a Deus como incapaz de realizar toda a sua vontade; enquanto Ele diz que realizará tudo aquilo que lhe apraz, e que nada é difícil para Ele. A isto respondo: Deus tem prazer em realizar tudo aquilo que é naturalmente possível, e Ele tem muito prazer em fazer isto e nada mais. Isto Ele é capaz de fazer. E isto Ele fará. Isto é o que Ele faz. Isto é o que Ele reivindica ser apto a fazer; e isto é de fato tudo o que a infinita sabedoria e poder são capazes de fazer.

(4) Porém se diz-se que se o pecado é um mal, e Deus não o pode nem evitar e nem revogar, de modo a torná-lo um meio de alcançar um bem maior do que poderia ser assegurado sem este, Deus deveria estar infeliz em vista deste fato, por não poder evitá-lo, e assegurar um mais alto bem sem este.

A isto respondo: Deus não tem o desejo e nem a vontade de realizar aquilo que são impossibilidades naturais. Deus é um ser que trabalha dentro dos limites da razão, e não se empenha e nem deseja realizar obras, que estejam fora dos limites daquilo que é possível no contexto da razão. Deus se sente satisfeito e bastante feliz por realizar aquilo que é possível, dentro da natureza do caso, e não sente quaisquer tristezas que estejam fora da razão, porque Ele não age além do infinito, e não realiza o que é incompatível ou impossível em relação à própria eternidade. O grande prazer de Deus é assegurar todo o bem possível, dentro dos limites do infinito; com isto Ele se sente infinitamente bem.

Novamente: a objeção que a visão do assunto aqui apresentado acrescenta, não limita o poder de Deus? Esta objeção não é uma mentira, empregada com toda a força contra os mesmos que a empregam? Ter para si que o pecado é o meio ou a condição necessários para que se alcance o mais alto bem, é entender que Deus não foi capaz de promover o mais alto bem, sem ter que recorrer a um meio tão vil que é o pecado. O pecado é uma abominação em si mesmo; não é verdade que o pecado realmente limita a atuação do poder de Deus, que mantém a sua inabilidade para promover o bem supremo sem o pecado? E semelhantemente, assim também acreditam que Deus não poderia ter interferido, com as livres ações dos agentes morais com a finalidade de evitá-los? O pecado de fato existe. Deus abomina o pecado. Como é então que a existência do pecado pode ser explicada de modo satisfatório? Suponho que o pecado seja um mal incidental, e impossível de ser evitado, para o sistema de governo moral que, a despeito do mal, foi considerado levando em conta o todo, o melhor sistema que poderia ser adotado. Outros supõe que o pecado seja o meio ou condição necessários para que se alcance o mais alto bem; e cuja existência pode ser explicada deste modo: isto é, estas pessoas supõem que Deus admite ou permite a existência do pecado como uma ocasião, condição ou meio necessários para que se alcance o mais alto bem; pensam ainda que Deus não foi capaz de assegurar o mais alto bem sem que o pecado existisse. As duas explicações do fato admitido da existência do pecado, diferem no seguinte:

Um método de explicação baseia-se em que o pecado seja uma ocasião, condição ou meio necessário para que se alcance o mais alto bem; e que Deus de fato, considerando o todo, prefere a existência do pecado à santidade, em cada uma das instâncias em que o pecado existe; porque, sob estas circunstâncias, o pecado é uma condição ou um meio do maior bem, melhor do que o que poderia ter sido assegurado pela santidade. Esta teoria representa a Deus como incapaz de assegurar, através de outros meios ou sob outras condições, o final que Ele mesmo planejou, sem o auxílio do pecado.

A outra teoria baseia-se em que Deus realmente prefira a santidade do que o pecado, em cada instância em que estes ocorram; que Deus considera o pecado como um mal, mas que enquanto Ele o considera como um mal, Ele mesmo suporta a existência do pecado como um mal, que seria menor do que a mudança que seria necessária em sua forma de governo, para evitá-lo. Ambas teorias devem admitir que em algum sentido, Deus não poderia de maneira sábia evitar o pecado. Que cada pessoa queira explicar a seu modo o fato da existência do pecado, porém deve ser admitido que em certo sentido, Deus não pode evitar a existência do pecado, e ao mesmo tempo assegurar o final compatível com a sua vontade.

Se for dito que Deus não poderia sabiamente evitar o pecado, e nem mesmo indeferi-lo para dele fazer o meio ou a condição necessária ao mais alto bem, Ele deve ser considerado infeliz pela existência do pecado; eu respondo que isto deve ser igualmente verdadeiro sobre as demais hipóteses.

O pecado é odioso, e as suas conseqüências são um grande mal. Estas conseqüências serão eternas e indefinidamente grandes. Deus deve obrigatoriamente desaprovar estas conseqüências. Se o pecado fosse a condição ou o meio necessário para o alcance do supremo bem, não deveria Deus lamentar-se por não poder assegurar o bem, sem ter que recorrer a meios tão repugnantes e horríveis? Se a impossibilidade de Deus sabiamente evitar o pecado interferirá, e diminuirá a sua própria felicidade, não seria o mesmo verdadeiro quanto à sua impossibilidade de assegurar o mais alto bem, sem a utilização de tais meios que comprovadamente causarão a destruição de milhões de pessoas?

 

A sabedoria e a benevolência dos propósitos de Deus

Temos visto que Deus é tanto sábio quanto benevolente. Esta é a doutrina tanto da razão como da revelação. A razão intuitivamente afirma que Deus existe, e que Ele é perfeito. A Bíblia assume que Ele existe, e é perfeito. Tanto a sabedoria quanto a benevolência, devem obrigatoriamente ser atributos do Deus infinito e perfeito. Estes atributos adentram o pensamento racional de Deus. A razão não poderia reconhecer algum ser como sendo Deus, se não fosse o dono destes atributos. Porém se a infinita sabedoria e benevolência são atributos morais de Deus, segue-se, certamente, que todos os seus desígnios ou propósitos são perfeitamente sábios e benevolentes. Deus escolheu o melhor final possível, e o persegue na utilização dos melhores meios praticáveis. Os seus propósitos abrangem tanto o final, como os meios necessários para assegurá-lo, juntamente com a melhor maneira de retirar o pecado, que é o resultado incidental por Deus ter escolhido este final, utilizando os meios escolhidos por Ele. E estes meios não se estendem; eles são todos, portanto, perfeitamente sábios e bons.

 

A imutabilidade dos propósitos divinos

Já vimos que a imutabilidade não é apenas um atributo natural, mas que é também um atributo moral de Deus. A razão afirma que o Deus infinitamente perfeito, e que por si só existe, é imutável em todos os seus atributos. Não é o meu propósito nesta lição, inquirir a respeito da base desta afirmação. Basta aqui dizer aquilo que cada um já sabe, que esta é a afirmação da razão. Esta verdade é também assumida e ensinada em todas as passagens da Bíblia Sagrada. Os atributos morais de Deus não são imutáveis no sentido da necessidade, porém somente no sentido da certeza. Embora Deus não precise ser necessariamente benevolente, Ele é, contudo, imutavelmente assim; como se Ele necessariamente o devesse ser. Se a benevolência dEle fosse necessária, não seria uma virtude, pela simples razão de não ser espontânea. Porém sendo espontânea, a sua imutabilidade lhe rende o mérito completo de ser digno do maior louvor.

 

Os propósitos de Deus são a base de uma confiança eterna e feliz.

Isto significa que os propósitos de Deus devem, dentro dos limites da razão, ser uma fonte de eterno conforto, alegria e paz. Seres egocêntricos certamente não se regozijarão nestes propósitos, porém seres benevolentes deverão se regozijar, e de fato se regozijarão. Se estes propósitos são infinitamente sábios e bons, e se certamente serão realizados, devem obrigatoriamente formar uma base racional de confiança e alegria infalíveis. Deus diz:

"Que anuncio o fim desde o princípio e, desde a antigüidade, as coisas que ainda não sucederam; que digo: o meu conselho será firme, e farei toda a minha vontade" (Is 46.10).

"O conselho do Senhor permanece para sempre; os intentos do seu coração, de geração em geração" (SI 33.11).

"Muitos propósitos há no coração do homem, mas o conselho do Senhor permanecerá" (Pv 19.21).

"Mas, se é de Deus, não podereis desfazê-la, para que não aconteça serdes também achados combatendo contra Deus" (At 5.39).

Estas, e muitas outras passagens paralelas, são de forma muito razoável a fonte de perpétua confiança e alegria para aqueles que amam a Deus, e que estão ao lado dEle.

 

A relação dos propósitos de Deus com a sua presciência ou conhecimento prévio.

Já vimos que Deus é onisciente, isto é, que Ele necessariamente e eternamente é conhecedor de tudo aquilo que é, ou que pode vir a ser objeto de conhecimento. Os propósitos de Deus também devem ser eternos e imutáveis, conforme já vimos. Em termos de tempo, portanto, os seus propósitos e o seu conhecimento prévio devem ser contemporâneos, ou seja, devem ser co-eternos.

Porém de acordo com a ordem da natureza, o conhecimento de Deus acerca daquilo que Ele poderia fazer, e daquilo que poderia ser feito, deve ter precedido os seus propósitos; isto é, Ele não poderia assim falar, de acordo com a ordem da natureza, se tivesse formado o seu propósito e mudado de idéia quanto àquilo que faria, e o que teria sido melhor fazer. Até que todos os possíveis finais, caminhos e meios, fossem ponderados e entendidos, seria obviamente impossível fazer uma seleção, estabelecendo o final, com todos os meios necessários; e também estabelecer sobre caminhos e meios para banir o mal, seja de caráter natural ou moral, o que deveria ser visto como inevitavelmente incidental para qualquer sistema. Deste modo parece que, de acordo com a ordem natural, a presciência daquilo que poderia ser feito, e daquilo que Ele poderia fazer, deve ter precedido o propósito de fazer. O propósito foi resultante da presciência ou do conhecimento antecipado. Ele sempre soube o que poderia fazer, antes que decidisse o que faria. Mas, por outro lado, o propósito a realizar deveria, pela ordem natural, ter precedido o conhecimento daquilo que Ele deveria fazer, ou daquilo que deveria ser feito, ou que aconteceria como resultado de seu propósito. Visto relativamente àquilo que Ele poderia fazer, e àquilo que poderia ser feito, a Divina presciência deve obrigatoriamente, na ordem da natureza, preceder os Divinos propósitos. Porém quando visto relativamente àquilo que Deus poderia fazer, e quanto àquilo que poderia ser feito, e quanto ao que poderia acontecer, os Divinos propósitos devem obrigatoriamente, na ordem da natureza, ter precedido a Divina presciência. Porém novamente digo, que assim como o pré-conhecimento foi necessariamente eterno com Deus, os seus propósitos devem ter sido também obrigatoriamente eternos. E portanto, na ordem de tempo, nem a sua presciência poderia ter precedido os seus propósitos, e nem os seus propósitos terem precedido a sua presciência. Estes foram contemporâneos e co-eternos.

 

Os propósitos de Deus não são inconsistentes entre si, porém demandam o uso de meios, tanto por parte de Deus como por nós, para que se cumpram.

Para que seja alcançado o grandioso final sobre o qual Ele tem colocado o seu coração, é necessária a utilização de meios, tanto morais como físicos. O objetivo de Deus é o mais alto bem estar de todo o universo. Este final somente pode ser assegurado através da garantia da conformidade às leis materiais e do pensamento. O pensamento é influenciado pelos motivos, e daí o governo moral e físico são meios naturalmente necessários para assegurar o grandioso final proposto pelo Divino pensamento.

Daí também resulta a necessidade de um vasto e complicado sistema de meios e influências, tal qual vemos espalhado à nossa volta, por todos os lados. A história do universo, não é outra senão a história da criação, e os meios que Deus está utilizando para garantir o seu final, tem os seus resultados naturais e acidentais. Já foi mostrado que a Bíblia ensina que, os propósitos de Deus incluem e dizem respeito tanto aos meios quanto aos fins. Apenas acrescentarei que os propósitos de Deus não executam nenhum evento, que dependam dos atos de um agente moral, necessariamente certo, ou que seja certo porém com a certeza de uma necessidade. Contudo, como já foi dito anteriormente, todos os eventos são certos sob alguma dose de certeza; e o seriam e deveriam ser, se por acaso virão a ocorrer, se Deus os tem proposto, ou se Ele os conhece ou não de antemão. Contudo, nenhum evento, dependendo da vontade de um agente livre, é, ou pode ser, garantido, com a certeza da necessidade. Tal agente poderia, por uma possibilidade natural, fazer algo de um modo diferente de sua própria vontade, ou de um modo diferente do plano que Deus tem para com ele, ou que queira que ele faça. Seja bem entendido que os propósitos de Deus não são um sistema de fatalidade. Eles deixam cada agente moral completamente livre para escolher e agir livremente. Deus infalivelmente conhece como cada criatura agirá, e tem feito todos os seus preparativos de modo adequado, para que possa indeferir as ações malignas dos agentes morais por um lado, e, por outro lado, produzir ou induzir as ações de outros em santidade. Porém deve ser lembrado que nem a Divina presciência, e nem o propósito Divino, em qualquer ocasião, colocam de lado o livre arbítrio de cada criatura. Ela, em cada ocasião, age tão livremente e tão responsavelmente como se Deus jamais conhecesse e nem tivesse algum propósito sobre a sua conduta ou destino.

Os propósitos de Deus, em determinado sentido, estendem-se a todos os eventos, como já foi mostrado. Eles se estendem realmente dos eventos mais comuns, aos eventos mais raros da vida. Porém quanto aos assuntos cotidianos da vida, não é usual que as pessoas tropecem, andem errantes, e digam: "Por que, se devo viver, devo fazê-lo de modo a destruir a minha saúde e a minha vida; e, se devo morrer, não poderei viver, ainda que faça tudo o que quiser". Não, nestes eventos estas pessoas não podem lançar fora a responsabilidade, lançando-se sobre os propósitos de Deus. Mas, pelo contrário, elas estão comprometidas no asseguramento do final que têm em vista, como se Deus jamais tenha tido o conhecimento ou qualquer propósito a respeito. Por que, então, fariam como freqüentemente fazem, no que diz respeito à salvação de sua alma? Pois lançam fora a responsabilidade e acomodam-se incli-nando-se à inatividade, como se os propósitos de Deus a respeito da salvação não fossem nada mais do que um sistema de fatalidade ferrenha, do qual não houvesse qualquer forma de escape. Sem dúvida, "há desvarios no seu coração, na sua vida" (Ec 9.3). Porém estas pessoas precisam compreender que, assim fazendo, pecam contra o Senhor, e podem estar certas de que o pecado delas as encontrarão.

 

 

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