A VERDADE DO EVANGELHO
TEOLOGIA SISTEMÁTICA

Charles Finney

 

AULA 27

SANTIFICAÇÃO: PAULO PLENAMENTE SANTIFICADO

 

Eu poderia alegar com ênfase, através de muitas outras considerações e, como já afirmei, encher um livro com textos bíblicos, argumentos e demonstrações em favor do alcance da santificação plena nesta vida.

Mas me abstenho e apresentarei apenas mais uma consideração -- uma consideração que tem grande peso em algumas mentes. É questão de grande importância saber se alguém alguma vez realmente alcançou este estado. Alguns acreditam que é alcançável, não considerando de muita importância mostrar o que foi de fato alcançado. Eu admito categoricamente que pode ser alcançado, mesmo que nunca o tenha sido. Contudo me parece que, como fonte de encorajamento para a igreja, é de imensa importância saber se, de fato, um estado de santidade plena e permanente foi alcançado nesta vida. Esta questão abrange muitas premissas. Mas por causa da brevidade, planejo examinar senão um caso e ver se não há razão para crer que pelo menos em uma ocasião foi alcançado. O caso ao qual aludo é o do apóstolo Paulo. E proponho levantar e examinar as passagens que falam a seu respeito, com a finalidade de averiguar se há evidência de que ele alcançou este estado nesta vida.

E deixe-me aqui dizer que na minha opinião parece claro que Paulo e João, para não mencionar outros apóstolos, planejaram e esperaram que a igreja os entendesse que falavam da experiência que receberam, aquela plenitude que ensinaram estar em Cristo e no seu Evangelho.

E desejo dizer de novo e mais expressamente que não apoio a praticabilidade de alcançar um estado de santidade plena e contínua na questão de que se alguém alguma vez o alcançou, mais do que apoiaria a questão de que se o mundo será convertido no fato de que se já está convertido. Fico surpreso quando o fato de um estado de santidade plena é alegado enfaticamente como um argumento entre muitos para provar seu alcance e isso também soa meramente como um encorajamento para os cristãos apenas teorizarem sobre esta bênção -- esses opositores e revisores agarram-se a isto como a doutrina da santificação, como se ao colocar esta questão particular em dúvida, pudessem subverter todas as outras provas de seu alcance. Isto é totalmente absurdo. Quando examino o caráter de Paulo à vista deste objetivo, se não parecesse claro a você que ele alcançou este estado, você não deve negligenciar o fato de que seu alcance é confirmado por outros argumentos com bases completamente independentes da questão, quer tenha sido atingido, quer não; e que uso isto somente como um argumento, apenas porque me parece enérgico e adequado proporcionar grande encorajamento para os cristãos perseguirem este estado.

Primeiro farei algumas observações com respeito à maneira pela qual a linguagem de Paulo, quando fala de si mesmo, deve ser entendida, e depois procederei um exame das passagens que falam do seu caráter cristão.

O caráter do apóstolo, conforme está revelado em sua vida, demanda que devamos entendê-lo que ele quer dizer tudo o que afirma quando fala a seu próprio favor. O Espírito de inspiração o guardaria de falar de forma soberba a seu próprio respeito. Parece que ninguém tinha maior modéstia e se sentia tão pouco disposto a exaltar suas próprias obtenções. Se ele considerasse que não tinha alcançado um estado de santificação plena, e como muitas vezes, se não em todas as coisas, ficando aquém do seu dever, poderíamos esperar que reconhecesse isso na sua mais profunda humilhação. Se Paulo é acusado de viver em pecado e de ser mau em alguma coisa, podemos esperar que quando fala sob inspiração, não se justificaria, mas inequivocamente se condenaria nessas coisas, se fosse realmente culpado.

Em vista destes fatos, examinemos esses textos bíblicos, nos quais Paulo fala de si mesmo e é falado por outros.

"Vós e Deus sois testemunhas de quão santa, justa e irrepreensivelmente nos houvemos para convosco, os que crestes" (1 Ts 2.10). Aqui afirma de modo irrestrito sua própria santidade. Esta linguagem é muito forte: "Quão santa, justa e irrepreensivelmente". Se ser santo, justo e irrepreensível não é santificação plena, então o que é? Ele apela a Deus que esquadrinha os corações pela verdade do que ele diz e às suas próprias observações, recorrendo a Deus e também a elas para dar testemunho de que tinha sido santo e sem culpa. Aqui temos o testemunho de um apóstolo inspirado, no linguajar mais irrestrito, afirmando sua própria santificação plena. Ele estava enganado? Pode ser que soubesse que todo o tempo vivia em pecado? Se linguagem como esta não é crédito para uma afirmação irrestrita de que vivia entre os crentes sem pecado, o que pode ser conhecido pelo uso da linguagem humana?

"Não dando nós escândalo em coisa alguma, para que o nosso ministério não seja censurado. Antes, como ministros de Deus, tornando-nos recomendáveis em tudo: na muita paciência, nas aflições, nas necessidades, nas angústias, nos açoites, nas prisões, nos tumultos, nos trabalhos, nas vigílias, nos jejuns, na pureza, na ciência, na longanimidade, na benignidade, no Espírito Santo, no amor não fingido, na palavra da verdade, no poder de Deus, pelas armas da justiça, à direita e à esquerda" (2 Co 6.3-7). Sobre estes versículos, comento: Paulo afirma que não deu nenhum escândalo em coisa alguma, mas em todas as coisas se aprovou como ministro de Deus. Entre outras coisas, ele o fez "na pureza, no Espírito Santo, no amor não fingido" e "pelas armas da justiça, à direita e à esquerda". Como um homem tão modesto como Paulo podia falar desta maneira sobre si mesmo, a menos que soubesse estar em um estado de santificação plena e considerasse de grande importância que a igreja o soubesse?

"Porque a nossa glória é esta: o testemunho da nossa consciência, de que, com simplicidade e sinceridade de Deus, não com sabedoria carnal, mas na graça de Deus, temos vivido no mundo e maiormente convosco" (2 Co 1.12). Esta passagem implica claramente a mesma coisa, sendo evidente que foi dita com o mesmo propósito -- declarar a grandeza da graça de Deus conforme manifestada no apóstolo.

"E, por isso, procuro sempre ter uma consciência sem ofensa, tanto para com Deus como para com os homens" (At 24.16). É indubitável que Paulo tinha uma consciência iluminada nesse momento. Se um apóstolo inspirado pôde afirmar que procurava "sempre ter uma consciência sem ofensa, tanto para com Deus como para com os homens", não devia estar em um estado de santificação plena?

"Dou graças a Deus, a quem, desde os meus antepassados, sirvo com uma consciência pura, porque sem cessar faço memória de ti nas minhas orações, noite e dia" (2 Tm 1.3). Mais uma vez Paulo afirma que serve a Deus com uma consciência pura. Ele poderia dizer isso se, freqüentemente e talvez todos os dias, como supõem alguns, violasse sua consciência?

"Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida que agora vivo na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus, o qual me amou e se entregou a si mesmo por mim" (Gl 2.20). Este texto não afirma, mas implica fortemente que Paulo vivia sem pecado e também que se considerava para sempre morto ao pecado no sentido de ser santificado.

"Mas longe esteja de mim gloriar-me, a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, pela qual o mundo está crucificado para mim e eu, para o mundo" (Gl 6.14). Este texto também proporciona a mesma conclusão acima.

"Porque para mim o viver é Cristo, e o morrer é ganho" (Fp 1.21). O apóstolo afirma que, para ele, viver era como se que Cristo habitasse na igreja, isto é, pela doutrina ilustrada por sua vida, era como se Cristo vivesse novamente e pregasse o seu próprio Evangelho aos pecadores e à igreja; ou, para ele, viver era tornar Cristo conhecido como se vivesse de novo na terra para se fazer conhecido. Como Paulo poderia dizer isto, a menos que seu exemplo, doutrina e espírito fossem os de Cristo?

"Portanto, no dia de hoje, vos protesto que estou limpo do sangue de todos" (At 20.26). Esta passagem, retirada do seu contexto, mostra claramente a impressão que Paulo desejou deixar nas mentes daqueles a quem falava. É certo que em nenhum sentido apropriado poderia estar "limpo do sangue de todos", a menos que tivesse cumprido todo o seu dever. Se ele estivesse pecaminosamente em falta de alguma graça, virtude ou obra, poderia ter dito isto? Certamente que não.

"Admoesto-vos, portanto, a que sejais meus imitadores. Por esta causa vos mandei Timóteo, que é meu filho amado e fiel no Senhor, o qual vos lembrará os meus caminhos em Cristo, como por toda parte ensino em cada igreja" (1 Co 4.16,17). Paulo manifestadamente se estabelece como exemplo para a igreja. Como poderia fazê-lo se estivesse vivendo em pecado? Ele lhes enviou Timóteo para avivar-lhes a memória com respeito à sua doutrina e prática, implicando que o que ensinou em toda a igreja ele praticou.

"Sede meus imitadores, como também eu, de Cristo" (1 Co 11.1). Paulo lhes ordena que o imitem como ele imitou Cristo; não na medida em que imitou Cristo, como alguns parecem entender, mas imitá-lo porque ele imitou Cristo. Como pôde desta maneira irrestrita ordenar que a igreja copiasse o seu exemplo, a menos que soubesse ser inocente?

"Sede também meus imitadores, irmãos, e tende cuidado, segundo o exemplo que tendes em nós, pelos que assim andam. Mas a nossa cidade está nos céus, donde também esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo" (Fp 3.17,20). Paulo de novo apela que a igreja o imite e particularmente observe aqueles que copiaram o seu exemplo, dando como razão: "Mas a nossa cidade está nos céus".

"O que também aprendestes, e recebestes, e ouvistes, e vistes em mim, isso fazei; e o Deus de paz será convosco" (Fp 4.9). Os filipenses receberam ordens de fazer as coisas que tinham aprendido, recebido e visto no apóstolo. E depois acrescenta que se fizerem essas coisas, o Deus de paz será com eles. Que outra coisa pode ser entendida, senão que Paulo quis dizer que viveu sem pecado entre os crentes?

A seguir, examinarei textos bíblicos que alguns supõem implicar que Paulo não estava num estado de santificação plena.

"Alguns dias depois, disse Paulo a Barnabé: Tornemos a visitar nossos irmãos por todas as cidades em que já anunciamos a palavra do Senhor, para ver como estão. E Barnabé aconselhava que tomassem consigo a João, chamado Marcos. Mas a Paulo parecia razoável que não tomassem consigo aquele que desde a Panfília se tinha apartado deles e não os acompanhou naquela obra. E tal contenda houve entre eles, que se apartaram um do outro. Barnabé, levando consigo a Marcos, navegou para Chipre. E Paulo, tendo escolhido a Silas, partiu, encomendado pelos irmãos à graça de Deus" (At 15.36-40).

Esta contenda entre Paulo e Barnabé surgiu do fato de que João, sobrinho de Barnabé, os tinha abruptamente deixado em suas viagens, parece que por nenhuma razão justificável, e voltado para casa. Parece que a confiança de Barnabé em seu sobrinho foi restaurada. Mas Paulo ainda não estava satisfeito com a estabilidade do caráter de João e julgou perigoso confiar nele como companheiro de viagem e cooperador. Não está insinuado nem pode ser razoavelmente deduzido que qualquer um deles pecou nesta contenda. Se um foi o culpado, parece que Barnabé estava em falta e não Paulo, já que determinou levar João consigo sem ter consultado Paulo. E ele persistiu nesta determinação até que deu de encontro com firme e tamanha resistência por parte de Paulo, que repentinamente tomou João e velejou para Chipre; enquanto que Paulo, escolhendo Silas como companheiro, foi recomendado pelos irmãos à graça de Deus e partiu. Certamente que não há nada que possamos descobrir neste episódio que Paulo, ou qualquer homem bom, ou um anjo, dadas as circunstâncias, precisa envergonhar-se. Não parece que haja outra ocasião em que Paulo agiu com mais consideração à glória de Deus e ao bem da religião do que neste episódio. E agora pergunto humildemente: que espírito é esse que encontra evidência suficiente neste caso para acusar um apóstolo inspirado de rebelião contra Deus?

"E, pondo Paulo os olhos no conselho, disse: Varões irmãos, até ao dia de hoje tenho andado diante de Deus com toda a boa consciência. Mas o sumo sacerdote, Ananias, mandou aos que estavam junto dele que o ferissem na boca. Então, Paulo lhe disse: Deus te ferirá, parede branqueada! Tu estás aqui assentado para julgar-me conforme a lei e, contra a lei, me mandas ferir? E os que ali estavam disseram: Injurias o sumo sacerdote de Deus? E Paulo disse: Não sabia, irmãos, que era o sumo sacerdote; porque está escrito: Não dirás mal do príncipe do teu povo" (At 23.1-5). Neste episódio foi imputada ira pecadora a Paulo, mas, até onde posso ver, sem qualquer razão justa. Para minha mente parece claro que o contrário é que deve ser deduzido. Parece que Paulo não conhecia pessoalmente o sumo sacerdote que então exercia o ofício. E ele manifestou a mais extrema consideração à autoridade de Deus quando citou o Antigo Testamento: "Não dirás mal do príncipe do teu povo", implicando que, a despeito do maltrato que recebera, ele não teria respondido, tivesse sabido tratar-se do sumo sacerdote.

Romanos 7.14-25 têm sido suposto por muitos ser um epítome da experiência de Paulo na ocasião em que escreveu a epístola. Sobre este texto, comento:

1. A seqüência lógica e a direção do argumento de Paulo mostram que o caso do qual estava falando, quer dele mesmo, quer de alguém, foi aduzido para ilustrar a influência da lei na mente carnal. Este é um caso no qual o pecado teve o pleno domínio e venceu todas as resoluções de obediência por parte do agente.

2. Que o uso do pronome singular e na primeira pessoa não prova nada com relação ao ponto, quer ele estava falando de si mesmo, quer não, pois isto é comum a ele e a outros escritores quando usam ilustrações. Ele mantém o pronome pessoal e passa para o capítulo oito, no começo do qual se apresenta a si mesmo ou a pessoa de quem está falando num estado de mente não só diferente, mas exatamente oposto. Portanto, se o capítulo sete contém a experiência de Paulo, de quem é a experiência que está no capítulo oito? Devemos entender ambos como a experiência de Paulo? Neste caso, temos de entender que primeiro ele está falando de sua experiência anterior e, depois, que foi santificado. Paulo começa o capítulo oito dizendo: "Portanto, agora, nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus, que não andam segundo a carne, mas segundo o espírito" (Rm 8.1) e designa como razão: "Porque a lei do Espírito de vida, em Cristo Jesus, me livrou da lei do pecado e da morte" (Rm 8.2). A lei do pecado e da morte era a lei nos membros de Paulo, ou a influência da carne, da qual ele tinha tão amargamente reclamado no capítulo sete. Mas agora parece que passou a um estado no qual está livre desta influência da carne, livre e morto para o mundo e para a carne, a um estado no qual "nenhuma condenação há". Portanto, se não havia nenhuma condenação no estado no qual estava, tem de ser ou porque ele não pecou, ou, se pecou, porque a lei não o condenou; ou porque a lei de Deus foi revogada ou ab-rogada. Se a pena da lei foi posta de lado no seu caso, pois ele podia pecar sem condenação, esta é uma real ab-rogação da lei. Mas como a lei não era e não podia ser posta de lado, sua pena não foi e não pôde ser ab-rogada no que tange a não condenar todo pecado. Se Paulo vivia sem condenação, deve ser porque viveu sem pecado.

A mim não me parece que Paulo fala de sua experiência no capítulo sete de Romanos, mas que supõe um caso somente para ilustrar e fala na primeira pessoa e no tempo presente simplesmente porque era conveniente e satisfatório ao seu propósito. O seu objetivo, com clareza, era, neste capítulo e no princípio do capítulo oito, contrastar a influência da lei e do Evangelho -- descrever no capítulo sete o estado de um homem que estava vivendo em pecado e condenado diariamente pela lei, convicto e constantemente lutando contra suas próprias corrupções, mas continuamente vencendo -- e no capítulo oito mostrar uma pessoa no prazer da liberdade do Evangelho, em que foi cumprida a justiça da lei no coração pela graça de Cristo. O capítulo sete pode ser bem aplicado ou a uma pessoa em estado de apostasia ou a uma pessoa condenada que nunca se converteu. O capítulo oito não pode ser claramente aplicado a ninguém senão àqueles que estão em um estado de santificação plena.

Eu já disse que o capítulo sete contém a história de alguém sobre quem o pecado tem domínio. Supor que esta era a experiência de Paulo quando escreveu a epístola, ou de alguém que estava na liberdade do Evangelho, é absurdo e contrário à experiência de todo aquele que sempre desfrutou da liberdade do Evangelho. E mais: isto é expressamente contradito no capítulo seis. Como eu disse, o capítulo sete mostra a pessoa sobre quem o pecado tem domínio, mas Deus afirma: "Porque o pecado não terá domínio sobre vós, pois não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça" (Rm 6.14). Sobre esta passagem comento finalmente que se Paulo estivesse falando de si mesmo no capítulo sete de Romanos e contando realmente uma história de sua experiência, não prova absolutamente nada com respeito à sua santificação subseqüente, pois o capítulo oito mostra de modo conclusivo que não era sua experiência na ocasião em que escreveu a epístola. O fato de que os capítulos sete e oito estão separados desde que a tradução foi feita, como eu disse antes, tem levado muitos a errar na compreensão desta passagem. Nada é mais certo do que os dois capítulos terem sido designados não só para descrever experiências diferentes, mas opostas uma à outra. E que ambas deviam pertencer à mesma pessoa da mesma época é manifestadamente impossível. Se neste contexto Paulo está falando de sua experiência própria, somos obrigados a entender que o capítulo oito descreve sua experiência na ocasião em que escreveu a epístola e o capítulo sete descreve uma experiência anterior.

Se alguém entende que o capítulo sete descreve uma experiência cristã, ele tem de entender que tal capítulo está relatando as práticas de alguém num estado muito imperfeito, e que o capítulo oito descreve uma alma num estado de santificação plena. De forma que esta epístola, em vez de militar contra a idéia de santificação plena de Paulo, na pressuposição de que ele estava falando de si próprio, estabelece completamente o fato de que estava naquele estado. O que esses irmãos querem dizer ao considerar a parte final do capítulo sete como inteiramente sem ligação com o que o precede e o segue, e contar uma história triste sobre o assunto da escravidão legal e pecadora de um apóstolo inspirado? O que não pode ser demonstrado deste modo na Bíblia? Não é regra sã e indispensável de interpretação bíblica que uma passagem seja considerada em seu contexto e que o âmbito e intenção principal do escritor devam ser continuamente mantidos em mente na decisão do significado de qualquer passagem? Por que então, suplico, os versículos que precedem e os que imediatamente se seguem no capítulo oito são totalmente negligenciados no exame desta passagem importante?

"Para conhecê-lo, e a virtude da sua ressurreição, e a comunicação de suas aflições, sendo feito conforme a sua morte; para ver se, de alguma maneira, eu possa chegar à ressurreição dos mortos. Não que já a tenha alcançado ou que seja perfeito; mas prossigo para alcançar aquilo para o que fui também preso por Cristo Jesus. Irmãos, quanto a mim, não julgo que o haja alcançado; mas uma coisa faço, e é que, esquecendo-me das coisas que atrás ficam e avançando para as que estão diante de mim, prossigo para o alvo, pelo prêmio da soberana vocação de Deus em Cristo Jesus. Pelo que todos quantos já somos perfeitos sintamos isto mesmo; e, se sentis alguma coisa doutra maneira, também Deus vo-lo revelará" (Fp 3.10-15).

Aqui está uma insinuação clara aos Jogos Olímpicos, nos quais os atletas correm por um prêmio e não são coroados enquanto não chegam ao fim da corrida, pouco importando o quão bem eles correram. Neste ponto Paulo fala de duas espécies de perfeição, uma das quais reivindica ter alcançado e a outra, não. A perfeição que não tinha alcançado era aquela que não esperava alcançar até o fim da corrida, ou até que tivesse chegado à ressurreição dos mortos. Até então Paulo não era e não esperava ser perfeito, no sentido de que deveria "alcançar aquilo para o que fui também preso por Cristo Jesus". Mas tudo isso não implica que ele não estava vivendo sem pecado, não mais que implica que Cristo estava vivendo em pecado quando afirmou: "Tenho de caminhar hoje e amanhã, e ao terceiro dia serei perfeito". Aqui Cristo fala de uma perfeição que Ele não tinha alcançado.

E evidente que era o estado glorificado ao qual Paulo não alcançara e a cuja perfeição se estava lançando com ímpeto. Mas no versículo quinze fala de outro tipo de perfeição que professou ter alcançado. "Pelo que" -- diz ele -- "todos quantos já somos perfeitos sintamos isto mesmo", ou seja, vamos nos lançar com ímpeto para este sublime estado de perfeição na glória, para que por algum meio alcancemos a ressurreição dos mortos. A figura dos jogos deve ser continuamente mantida em mente na interpretação desta passagem. O prêmio dessas corridas era a coroa. A coroa só era dada ao término da corrida. E, ademais, ninguém era coroado, salvo se corria legalmente, quer dizer, de acordo com as regras. Paulo estava correndo pelo prêmio que é a coroa, não, como alguns supõem, pela santificação plena, mas por uma coroa de glória. Ele não esperava recebê-la até que tivesse completado a corrida. Paulo exorta aqueles que eram perfeitos, isto é, aqueles que estavam correndo legalmente ou de acordo com as regras, a esquecerem as coisas que para trás ficavam e avançarem para a linha, quer dizer, para a meta, pelo prêmio ou pela coroa de glória que o Senhor, justo juiz, que estava testemunhando a corrida para premiar com a coroa ao vencedor, lhe daria naquele dia.

Está claro em minha mente que neste texto Paulo não ensina explícita ou implicitamente que estava vivendo em pecado, mas o oposto direto -- ele queria dizer, como tinha dito em muitos outros lugares, que era inculpável a respeito de pecado, mas que estava aspirando as mais sublimes obtenções e queria estar satisfeito com nada menos que a glória eterna.

Outra vez: "Não digo isto como por necessidade, porque já aprendi a contentar-me com o que tenho. Sei estar abatido me sei também ter abundância; em toda a maneira e em todas as coisas, estou instruído, tanto a ter fartura como a ter fome, tanto a ter abundância como a padecer necessidade. Posso todas nas coisas naquele que me fortalece" (Fp 4.11-13). Neste trecho bíblico é indubitável que Paulo quis afirmar não somente sua capacidade abstrata de fazer todo o seu dever, mas que tinha aprendido por experiência que de fato e em realidade se achava capaz de fazer todas as coisas que lhe eram exigidas.

Em relação ao caráter de Paulo, deixe-me dizer: Se Paulo não estava sem pecado, era um extravagante bazófio e tal linguagem usada por algum ministro daqueles dias seria considerada a linguagem de um extravagante bazófio. Esta sua colocação como exemplo tão freqüente e completamente sem qualquer precaução ou qualificação, era altamente perigosa aos interesses da igreja, se não estivesse em um estado de santificação plena.

O apelo de Paulo a Deus para afirmar que em vida e coração ele era inocente, seria linguagem blasfema, a menos que realmente fosse o que professava ser. E se era o que professava ser, estava num estado de santificação plena. É desonrar a Deus sustentar, sob tais circunstâncias, que Paulo não tinha alcançado a bênção da santificação plena. Em nenhum lugar da Bíblia o apóstolo confessa ter pecado depois que se tornou apóstolo, mas invariavelmente se justifica, apelando aos homens e a Deus por sua plena integridade e ausência de pecado. Sustentar a pecaminosidade deste apóstolo é negar a graça do Evangelho e acusar tolamente a Deus. E não posso senão perguntar: Por que há grande esforço na igreja em sustentar que Paulo vivia em pecado e nunca foi plenamente santificado até a morte?

Duas coisas me pareceram assombrosas:

1. Que tantos cristãos professos parecem pensar que dão a Deus elevada honra ao ampliar suas reivindicações da lei e negar que a graça do Evangelho é igual às exigências da lei.

2. Que tantas pessoas parecem ter uma visão completamente hipócrita do tema da santificação.

Com respeito à primeira destas opiniões, muitos pesares foram levantados para ampliar ao extremo as reivindicações da lei de Deus. Muito foi dito de sua excedente e infinita severidade, e o grande comprimento, largura, altura e profundidade de suas reivindicações. Muitos estão engajados em defender as reivindicações da lei, como se temessem grandemente que a pureza da lei fosse manchada, sua exatidão e espiritualidade negligenciadas e suas sublimes e santas reivindicações postas à parte ou de alguma maneira dissipadas ao nível da paixão e egoísmo humanos. Mas enquanto se ocupam em seu zelo em defender a lei, essas pessoas falam, pregam e escrevem como se supusessem que isso é indispensável, a fim de sustentar as altas reivindicações da lei, negar a graça e o poder do Evangelho, e sua suficiência em capacitar os seres humanos a obedecer as requisições da lei. Assim, eles me parecem entrar inadvertidamente na disputa contra a graça de Cristo e com o extremo zelo e até veemência negar que a graça de Cristo seja suficiente para vencer o pecado e cumprir em nós a justiça da lei. Sim, no seu zelo para com a lei, me parecem ou negligenciar ou categoricamente negar a graça do Evangelho.

Exaltada seja a lei. Glorificada e honrada seja ela. Que seja mostrado que ela é exata, pura e perfeita como o seu Autor. Dissemine suas reivindicações sobre todo o campo da responsabilidade humana e angelical. Leve-a como uma chama de fogo para o mais profundo recesso de todo coração humano. Exalte-a tão alto quanto o céu. Brade sua autoridade e reivindicações às profundezas do inferno. Estenda sua linha no universo da mente. E que ela proclame como bem pode e deve a morte e perdição terrível contra todo tipo e grau de iniqüidade. Contudo que seja lembrado para sempre que a graça do Evangelho é co-extensiva com as reivindicações da lei. Que ninguém, em sua discussão ao defender a autoridade da lei, insulte o Salvador, exercite-se na incredulidade ou dissipe e naufrague na fé da igreja, defendendo a idéia profana de que o Evangelho glorioso do Deus bendito, estabelecido e tornado poderoso pela aplicação eficaz do Espírito Santo, não é suficiente para cumprir em nós "a justiça da lei" e nos motivar a conservar "firmes, perfeitos e consumados em toda a vontade de Deus".

Com relação à segunda coisa que me parece assombrosa, isto é, que tantos parecem ter uma visão inteiramente hipócrita da doutrina da santificação, deixe-me dizer que eles parecem ter medo de admitir que alguém seja completa e perfeitamente santificado nesta vida, a fim de mal gastarem o orgulho humano, parecendo dar como certos que se alguém é plenamente santificado, ele tem de que se gloriar, como se tivesse feito algo e fosse em si mesmo melhor do que outros. Ao passo que a doutrina da santificação plena detesta a idéia do mérito humano, nega-a e repudia-a como uma total abominação a Deus e à alma santificada. Esta doutrina, como é ensinada na Bíblia e como eu a entendo, é até onde possível conivente no menor grau com a idéia de qualquer coisa naturalmente boa nos santos ou pecadores. Designa o todo da salvação e da santificação do início ao fim, não só até que a alma seja santificada, mas em todos os momentos enquanto ela permanece naquele estado, ao habitante Espírito, influência e graça de Cristo.

 

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