A VERDADE DO EVANGELHO
TEOLOGIA SISTEMÁTICA

Charles Finney

 

AULA 26
Lembrarei ao leitor alguns pontos já estabelecidos neste curso.

 

1. O verdadeiro intento e significado da lei de Deus foi, como confio, averiguado nas aulas sobre o governo moral. Este ponto, se necessário, será examinado com referência àquelas aulas.

2. Também vimos o que está ou não implícito na plena obediência à lei moral.

3. Nas aulas mencionadas e também quando ministrei sobre a justificação e o arrependimento, foi mostrado que nada é aceitável a Deus como condição da justificação e conseqüente salvação, senão um arrependimento que implica o retorno à plena obediência à lei moral.

4. Ficou, também, claro que nada é santidade aquém da plena obediência à lei moral.

5. Foi demonstrado, outrossim, que a regeneração e o arrependimento consistem no retorno do coração à plena obediência a essa lei.

6. Examinamos, também, a doutrina da depra-vação e vimos que a depravação moral, ou o pecado, consiste em egoísmo e não está absolutamente na constituição dos homens; que o egoísmo não consiste nos apetites involuntários, paixões e inclinações, mas na entrega da vontade à satisfação das inclinações.

7. Vimos que a santidade consiste não na constituição do corpo ou da mente, mas que pertence estritamente só à vontade ou ao coração e consiste na obediência da vontade à lei de Deus como se acha revelada no intelecto e expressa em uma palavra -- amor; que este amor é idêntico à consagração plena do ser inteiro para a glória de Deus e para o bem-estar maior do Universo; ou, em outras palavras, que consiste em benevolência desinteressada.

8. Aprendemos que todos os verdadeiros santos, enquanto em estado de aceitação a Deus, entregam-se de fato à plena obediência em todas as exigências conhecidas de Deus, ou seja, cumprem temporariamente todo o seu dever -- tudo o que Deus, neste momento, lhes exige.

9. Vimos que esta obediência não ocorre independente da graça de Deus, mas é induzida pela habitação do Espírito de Cristo recebido pela fé e reinando no coração. Este fato será elucidado mais completamente nesta discussão. Uma aula anterior foi dedicada a esse tema, porém considerações mais completas aguardam sua vez no futuro.

 

Definindo os termos principais a serem usados nesta discussão.

Deixe-me observar que uma definição de termos em todas as discussões é de importância capital. Isto é especialmente verdadeiro no que respeita a este assunto. Observei que, quase sem exceção, aqueles que escrevem sobre este assunto, divergindo das visões discutidas aqui, fazem-no com base no que entendem sobre os termos santificação e perfeição cristã, diferentemente do que fazemos. Cada um dá a própria definição, variando materialmente de outros e do que entendemos pelos termos, e então prossegue em se opor de forma ostensiva à doutrina segundo aqui é apresentada. Isto não é só totalmente injusto, mas é evidente absurdo. Se me oponho a uma doutrina apresentada por outra pessoa, estou preso a me opor ao que ele realmente defende. Se apresento incorretamente os seus sentimentos, "assim combato [...] como batendo no ar" (1 Co 9.26). Fiquei pasmo com a diversidade de definições que foram dadas aos termos perfeição cristã, santificação etc, e ao testemunhar a diversidade de opiniões sobre o que está ou não implícito nestes termos. Um faz objeção completa ao uso do termo perfeição cristã, porque, na sua avaliação, implica isto ou aquilo, ou outra coisa que não suponho lhe esteja absolutamente implícita. Outro objeta o nosso uso do termo santificação, porque implica, de acordo com a sua compreensão, certas coisas que tornam o seu uso impróprio. Não faz parte do meu desígnio disputar sobre o uso de palavras. Entretanto, tenho de usar alguns termos e tenho de ter a permissão de usar a linguagem da Bíblia em seu sentido escriturístico, conforme eu a entendo. E se eu explicar o meu significado suficientemente e definir o sentido no qual uso os termos, e o sentido no qual a Bíblia manifestadamente os usa, isto deve bastar. E suplico que nada da linguagem que emprego seja entendido a mais ou a menos do que eu professo que ela signifique. Outros podem, se lhes agradam, usar os mesmos termos e dar uma definição diferente. Mas tenho o direito de esperar e pressupor que se eles se sentirem chamados a se opor ao que eu digo, terão em mente a minha definição dos termos e não se atreverão, como alguns fizeram, a se opor às minhas opiniões, baseando-se apenas nos próprios significados propostos, e não na minha definição dos termos usados. Os que assim agiram afastaram-se material e infinitamente do sentido no qual uso os mesmos termos, formando os seus argumentos para provar, de acordo com a sua definição, que a santificação não é realmente alcançável nesta vida.

Santificação é termo de uso freqüente na Bíblia. Seu significado simples e primário quer dizer um estado de consagração a Deus -- santificar é separar para uso santo, consagrar uma coisa a serviço de Deus. Isto está claro no uso do termo tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. A palavra grega hagiazo significa santificar, consagrar ou dedicar uma pessoa ou coisa a um uso particular e especialmente sagrado. Esta palavra é sinônimo do termo hebraico kaudash. Este vocábulo é usado no Antigo Testamento para expressar a mesma coisa que se quer dizer com o vocábulo grego hagiazo, isto é, consagrar, dedicar, separar, santificar, purificar, tornar limpo ou puro. Hagiasmos, substantivo de hagiazo, significa santificação, devoção, consagração, pureza, santidade.

Do uso bíblico destes termos fica evidente:

1. Que a santificação não implica alguma mudança constitucional, quer da alma, quer do corpo. Consiste na consagração ou devoção das faculdades constitucionais do corpo e da alma a Deus, e não em alguma mudança na própria constituição.

2. Que a santificação não é um fenômeno ou estado do intelecto. Nem pertence à razão, consciência ou ao entendimento. Todos os estados do intelecto são estados puramente passivos da mente e, como vimos em abundância, é óbvio que a santidade não se afirma a partir desses estados passivos.

3. Que a santificação, no sentido bíblico e apropriado do termo, não é um mero sentimento de qualquer tipo. Não é um desejo, um apetite, uma paixão, uma inclinação, uma emoção, nem na verdade algum tipo ou grau de sentimento. Não é um estado ou fenômeno da sensibilidade. Os estados da sensibilidade são, como os do intelecto, estados puramente passivos da mente, como foi mostrado repetidas vezes. Eles obviamente não podem ter caráter moral.

4. Que o uso bíblico do termo, quando aplicado às pessoas, não admite compreendê-lo como a consistir em algum estado ou atitude involuntários da mente.

5. Que os escritores inspirados com certeza usaram os termos traduzidos por santificação para designar um fenômeno da vontade ou um estado voluntário da mente. Eles empregaram o termo grego hagiazo e o termo hebraico kaudash para representar o ato de consagrar a pessoa ou alguma coisa a serviço de Deus e para o bem-estar maior do Universo. O termo manifestadamente não só representa um ato da vontade, mas um ato ou escolha última na medida que é distinguido de uma mera volição ou ato executivo da vontade. Assim, os termos traduzidos por santificado são usados como sinônimo de amar a Deus de todo o coração e o próximo como a nós mesmos. É claro que o significado da palavra grega hagiasmos, traduzida por santificação, expressa um estado ou atitude de consagração voluntária a Deus, um ato continuado de consagração; um estado de escolha que difere do mero ato de escolha, um permanente estado de escolha, uma preferência fixa e controladora da mente, um cometimento contínuo da vontade ao bem-estar maior de Deus e do Universo. A santificação, como um estado que difere de um ato santo, é uma intenção e posição última, sendo de forma precisa sinônimo de um estado de obediência ou de conformidade com a lei de Deus. Vimos repetidas vezes que a vontade é a faculdade executiva ou controladora da mente. A santificação consiste na devoção ou consagração da vontade em si e do ser inteiro, de tudo o que somos e temos, na medida que as faculdades, suscetibilidades, possessões estão sob o controle da vontade a serviço de Deus ou -- o que é a mesma coisa -- aos mais altos interesses de Deus e do ser. A santificação, portanto, não é nada mais nada menos do que obediência plena à lei moral.

A santificação pode ser plena em dois sentidos: (1) No sentido de obediência vigente e plena ou consagração plena a Deus; e (2) no sentido de consagração ou obediência contínua e permanente a Deus. A santificação plena, quando os termos são usados neste sentido, consiste em ser estabelecida, confirmada, preservada, continuada em um estado de santificação ou de consagração plena a Deus.

Nesta discussão usarei a expressão santificação plena para designar um estado de consagração confirmada e plena de corpo, alma e espírito ou do ser inteiro a Deus -- não no sentido de que uma alma completamente santificada não possa pecar, mas que, de fato, não peca e não pecará. Nem uso a expressão santificação plena como a implicar que a alma plenamente santificada não está em perigo de pecar e que não necessite do uso e aplicação completos de todos os meios da graça para impedir-lhe de pecar e garantir a sua santificação continuada. Nem quero dizer por santificação plena um estado no qual não haverá mais luta ou guerra contra a tentação. Tal guerra não cessou em Cristo, nem cessará com alguém na carne. Nem emprego a expressão como a implicar um estado no qual não seja possível mais progresso na santidade. Tal estado não é ou jamais será possível a qualquer criatura, pela razão clara de que todas as criaturas têm de aumentar em conhecimento. Isto implica em aumento de santidade num ser santo. Os santos, sem dúvida, crescerão na graça ou santificação por toda a eternidade. Nem quero dizer por santificação plena que a alma plenamente santificada já não precisará da graça ininterrupta e da habitação do Espírito de Cristo para preservá-la do pecado e garantir sua continuação num estado de consagração a Deus. É surpreendente que tais homens -- como o Dr. Beecher e outros -- supusessem que um estado de consagração plena implicasse que a alma plenamente santificada já não precisa da graça de Cristo para preservá-la. A santificação plena, em vez de não implicar mais dependência da graça de Cristo, implica a apropriação constante de Cristo pela fé como a santificação da alma.

Mas visto que a santificação plena, como entendo a expressão, é idêntica à obediência total e contínua à lei de Deus e visto que, em aulas sobre o governo moral, tenho mostrado plenamente o que está ou não implícito na obediência total à lei de Deus, para evitar muita repetição tenho de remetê-lo ao que eu disse nos tópicos há pouco mencionados.

 

Mostrando qual é a verdadeira questão em debate.

1. Não está em questão se um estado de obediência total e vigente à lei divina é alcançável nesta vida. Creio que isto foi claramente estabelecido em aulas anteriores.

2. Não está em questão se um estado de permanente e plena obediência foi alcançado por todos ou por alguns dos santos na terra.

3. Mas a verdadeira questão em debate é: Um estado de santificação plena, no sentido de santificação permanente, é alcançável nesta vida?

Se nesta discussão insistirei no fato de que este estado de santificação plena é possível de ser alcançado, que fique bem claro ser a obtenção apenas aduzida como prova de que tal estado pode ser alcançado, sendo apenas um dos argumentos pelos quais esse alcance é demonstrado. Que fique também perfeitamente claro que se houvesse na estimação de alguém um defeito na prova de que este estado possa ser alcançado, ainda assim a integridade e a conclusão dos outros argumentos em defesa deste alcance não seriam abaladas. Sem dúvida, é verdade que o alcance deste estado pode ser estabelecido nesta vida abundante, independente da questão se este estado alguma vez foi alcançado.

A verdadeira questão é: Um estado de consagração plena, estabelecida e permanente a Deus é alcançável nesta vida, em tal sentido que podemos esperar ou pressupor racionalmente nos tornarmos assim estabelecidos, enquanto vivemos? As condições para alcançarmos este estado estabelecido na graça e no amor de Deus são tais que podemos esperar e pressupor racionalmente cumpri-las e, assim, nos tornarmos estabelecidos ou plenamente santificados nesta vida? Esta é, sem dúvida, a verdadeira e importante questão a ser resolvida.

 

Esta santificação plena é alcançável nesta vida.

1. É patente que a obediência total à lei de Deus é possível com base na capacidade natural. Contradizer este ensino é negar que um homem seja capaz de fazer tanto quanto pode. A própria linguagem da lei é clara em igualar suas reivindicações à capacidade do indivíduo, pouco importando quão grande ou pequena seja tal capacidade. "Amarás, pois, o SENHOR, teu Deus, de todo o teu coração, e de toda a rua alma, e de todo o teu poder" (Dt 6.5). Aqui é óbvio que tudo o que a lei exige é o exercício da força que tenhamos no serviço de Deus. Como a santificação plena consiste em obediência perfeita à lei de Deus e como a lei requer nada mais do que o uso certo da força que tenhamos, é claro que está para sempre estabelecido que um estado de santificação plena é alcançável nesta vida com base na capacidade natural.

Em geral, tal conceito é admitido pelos chamados calvinistas moderados. Ou talvez devesse dizer que, em geral, tenham aceitado, embora no presente alguns pareçam estar propensos a deixar a doutrina da capacidade natural e se abrigar na depravação constitucional, em vez de admitir o alcance de um estado de santificação plena nesta vida. Mas que os homens se abriguem onde quer que queiram, eles nunca podem fugir da letra, do espírito e significado óbvios da lei de Deus. Observe com que ênfase solene a Palavra de Deus afirma: "Amarás, pois, o SENHOR, teu Deus, de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu poder" (Dt 6.5). Esta é a injunção solene, quer seja dada a um anjo, quer a um homem, quer a uma criança. Um anjo é obrigado a exercer a força de um anjo; um homem, a força de um homem; uma criança, a força de uma criança. Isto é o que sucede com todo o ser moral no Universo exatamente como ele é e onde se encontra. Não se exige dele que crie poderes novos ou possua outros poderes diferentes dos que tem, mas que use os seus poderes exatamente como são, com extrema perfeição e constância a Deus.

2. As providências da graça são tais que permitem a obtenção da santificação plena nesta vida, tornando-se o objeto da busca razoável. Admite-se que a santificação plena da igreja será realizada. Admite-se, também, que esta obra será realizada "em santificação do Espírito e fé da verdade" (2 Ts 2.13). Concorda-se, outrossim, universalmente que esta obra deve começar aqui e terminar antes que a alma entre no céu. Daí a pergunta: Este estado é de fato alcançável antes da morte?

 

 

O argumento da Bíblia

Passo agora a considerar o tema, de forma direta e completa, como uma questão bíblica, tratando de descobrir se a santificação plena é em tal sentido alcançável nesta vida no que tange a tornar sua obtenção um objeto da busca racional.

1. E evidente do fato expressamente declarado que abundantes meios são fornecidos para a realização deste fim. "Aquele que desceu é também o mesmo que subiu acima de todos os céus, para cumprir todas as coisas. E ele mesmo deu uns para apóstolos, e outros para profetas, e outros para evangelistas, e outros para pastores e doutores, querendo o aperfeiçoamento dos santos, para a obra do ministério, para edificação do corpo de Cristo, até que todos cheguemos à unidade da fé e ao conhecimento do Filho de Deus, a varão perfeito, à medida da estatura completa de Cristo, para que não sejamos mais meninos inconstantes, levados em roda por todo vento de doutrina, pelo engano dos homens que, com astúcia, enganam fraudulosamente. Antes, seguindo a verdade em caridade, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo, do qual todo o corpo, bem ajustado e ligado pelo auxílio de todas as juntas, segundo a justa operação de cada parte, faz o aumento do corpo, para sua edificação em amor" (Ef 4.10-16). Sobre esta passagem, comento:

(1) O que o texto descreve é claramente aplicável apenas a esta vida. E nesta vida que os apóstolos, evangelistas, pastores, profetas e mestres exercem o seu ministério. Portanto, meios são aplicáveis e, até onde sabemos, aplicáveis somente a esta vida.

(2) O apóstolo aqui ensina manifestadamente que estes meios são projetados e adequados a aperfeiçoar ou edificar toda a igreja como Corpo de Cristo, "até que todos cheguemos à unidade da fé e ao conhecimento do Filho de Deus, a varão perfeito, à medida da estatura completa de Cristo" (Ef 4.13). Agora observe:

(3) Estes meios são para o aperfeiçoamento ou edificação dos santos até que a igreja inteira chegue "a medida da estatura completa de Cristo". Se isto não é santificação plena, então o que é? Que isto deve acontecer neste mundo é evidente do que se segue. Pois o apóstolo acrescenta: "Para que não sejamos mais meninos inconstantes, levados em roda por todo vento de doutrina, pelo engano dos homens que, com astúcia, enganam fraudulosamente" (Ef 4.14).

(4) Deve-se observar que esta é uma passagem muito forte em defesa da doutrina, já que afirma que meios abundantes são fornecidos para a santificação da igreja nesta vida. E como o todo inclui as suas partes, deve haver provisão suficiente para a santificação de cada indivíduo.

(5) Se a obra deve ser efetuada, fica implícito que estes são os meios. Mas estes meios são usados somente nesta vida. Portanto, a santificação plena tem de acontecer nesta vida.

(6) Se esta passagem não ensina um estado de santificação plena, tal estado então não é mencionado em nenhum lugar da Bíblia. E se aqui não é dito que os crentes devem ser santificados plenamente por estes meios, nesta vida, não sei se em algum outro lugar é ensinado que eles o serão.

(7) Mas suponha que esta passagem fosse colocada na linguagem de um mandamento. Como deveríamos entendê-la? Suponha que fosse ordenado aos santos que se tornassem perfeitos e chegassem "à medida da estatura completa de Cristo" (Ef 4.13). Poderia algo menos do que a santificação plena ser entendido por tais requisições? Então pergunto: por qual regra sensata da crítica a linguagem usada neste contexto poderia significar algo menos do que eu supus que significa?

2. Mas examinemos algumas das promessas. Não é meu desígnio analisar um grande número de promessas das Escrituras, mas, antes, mostrar que aquelas por mim analisadas sustentam plenamente as posições que levantei. Uma seria suficiente, se fosse completa e justa a sua aplicação, para resolver esta questão para sempre. Eu poderia encher muitas páginas no exame das promessas, porque elas são numerosas, detalhadas e pertinentes. Mas no momento meu desígnio é examinar um tanto quanto criticamente apenas umas poucas entre muitas. Isto o capacitará a aplicar os mesmos princípios ao exame das promessas escriturísticas em geral.

(1) Começo remetendo-o à lei de Deus, como se segue: "Agora, pois, ó Israel, que é o que o SENHOR, teu Deus, pede de ti, senão que temas o SENHOR, teu Deus, e que andes em todos os seus caminhos, e o ames, e sirvas ao SENHOR, teu Deus, com todo o teu coração e com toda a tua alma?" (Dt 10.12). Sobre este texto, comento:

(a) Resume abertamente todo o dever do homem para com Deus -- temê-lo e amá-lo com todo o coração e com toda a alma.

(b) Embora isto seja dito para Israel, é igualmente verdadeiro para todos os homens. Está vinculado também a todos e é tudo o que Deus, com relação a si mesmo, exige de todo homem.

(c) Contínua obediência a esta exigência é santificação plena, no sentido em que uso essa expressão.

"E o SENHOR, teu Deus, circuncidará o teu coração e o coração de tua semente, para amares ao SENHOR, teu Deus, com todo o coração e com toda a tua alma, para que vivas" (Dt 30.6). Aqui temos uma promessa expressa na mesma linguagem como o mandamento há pouco citado. Sobre esta passagem, comento:

Ela promete exatamente o que a lei exige. Se a lei exige um estado de santificação plena, ou se o que a lei exige é um estado de santificação plena, então esta é uma promessa de santificação plena. Como o mandamento está vinculado universalmente e é aplicável a todos, assim esta promessa é universalmente aplicável a todos os que se apegam a ela. A fé é condição indispensável do cumprimento desta promessa. É completamente impossível que amemos Deus com todo o coração sem termos confiança nEle. Deus gera amor no homem de nenhum outro modo a não ser pela revelação de si mesmo, como a inspirar confiança, aquela confiança que opera por amor.

Aqui não há razão perceptível para que não entendamos a linguagem da promessa como significando o tanto quanto significa a linguagem do mandamento. Esta promessa parece ter sido designada para compreendermos toda a base da exigência. Suponha que a linguagem desta promessa fosse usada num mandamento, ou suponha que a forma desta promessa fosse mudada para a de um mandamento. Imagine que Deus dissesse como o fez em outro lugar: "Amarás, pois, o SENHOR, teu Deus, de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu poder" (Dt 6.5). Quem duvidaria que Deus exigiu um estado de santificação ou consagração plena a Ele? Como então devemos entendê-lo, quando sua palavra vem na forma de uma promessa? Se a sua generosidade se iguala à sua justiça, as promessas da graça devem ser entendidas que significam tanto quanto as exigências de sua justiça. Se Ele se deleita em dar tanto quanto em receber, suas promessas têm de significar tanto quanto a linguagem de suas exigências.

Esta promessa é designada a ser cumprida nesta vida. A linguagem e o contexto assim implicam: "Eu circuncidarei o teu coração e o coração da tua semente para amares ao SENHOR, teu Deus, com todo o coração e com toda a tua alma". Isto, em certo sentido, acontece na regeneração, mas aqui parece estar prometido mais do que simples regeneração. Está claro, penso, que esta promessa se relaciona com um estado da mente e não apenas com um exercício.

Esta promessa no que diz respeito à igreja deve ser, em algum dia, absoluta e certa. De forma que Deus irá, sem dúvida, em algum período, gerar este estado de mente na igreja. Mas a que indivíduos e geração particulares será cumprida esta promessa, dependerá da fé que eles têm na promessa.

(2) "Eis que dias vêm, diz o SENHOR, em que farei um concerto novo com a casa de Israel e com a casa de Judá. Não conforme o concerto que fiz com seus pais, no dia em que os tomei pela mão, para os tirar da terra do Egito, porquanto eles invalidaram o meu concerto, apesar de eu os haver desposado, diz o SENHOR. Mas este é o concerto que farei com a casa de Israel depois daqueles dias, diz o SENHOR: porei a minha lei no seu interior e a escreverei no seu coração; e eu serei o seu Deus, e eles serão o meu povo. E não ensinará alguém mais a seu próximo, nem alguém, a seu irmão, dizendo: Conhecei ao SENHOR; porque todos me conhecerão, desde o menor deles até ao maior, diz o SENHOR; porque perdoarei a sua maldade e nunca mais me lembrarei dos seus pecados" (Jr 31.31-34). Sobre este texto, comento:

(a) O prazo ou o tempo em que o cumprimento desta promessa seria reivindicado e esperado era a partir do advento de Cristo. Tal verdade está estabelecida de forma inequívoca em Hebreus 8.8-12, onde a passagem acima é citada por extenso como sendo aplicável à era do Evangelho.

(b) Esta é inegavelmente uma promessa de santificação plena. É uma promessa de que a "lei será escrita no coração". Significa que o mesmo temperamento e espírito exigidos pela lei serão gerado na alma. Se a lei exige santificação plena ou santidade perfeita, esta é sem dúvida uma promessa disto, porque é uma promessa de tudo o que a lei exige. Afirmar que esta não é uma promessa de santificação plena, é o mesmo absurdo que afirmar que a obediência perfeita à lei não é santificação plena; e este último é o mesmo absurdo que afirmar que algo mais é o nosso dever do que a lei exige; e, de novo, isto é o mesmo que afirmar que a lei é defeituosa e injusta.

(c) Um estado permanente de santidade ou santificação plena está claramente implícito nesta promessa. A razão para pôr-se de lado o primeiro concerto se deu em razão de ter sido quebrado: "Porquanto eles invalidaram o meu concerto". Um desígnio principal do novo concerto é que ele não será quebrado, pois então não seria melhor do que o primeiro. A permanência está implícita no fato de que o concerto será escrito no coração. A permanência é evidente na afirmação de que Deus nunca mais se lembrará dos nossos pecados. Em Jeremias 32.39,40, onde a mesma promessa é em substância repetida, você encontrará declaração expressa de que o concerto deve ser "eterno" e que Deus porá o seu temor no coração do seu povo para que nunca se aparte dEle. Aqui a permanência é tão expressamente prometida quanto o pode ser.

Suponha que a linguagem desta promessa fosse colocada na forma de um mandamento. Imagine que Deus dissesse: "Que a minha lei esteja no vosso coração e no vosso interior, e que o meu temor esteja no vosso coração para que nunca vos aparteis de mim. Que o vosso concerto comigo seja eterno". Se este linguajar fosse encontrado em um mandamento, alguém em juízo perfeito duvidaria que estivesse exigindo santificação perfeita e permanente? Se não há qualquer dúvida, por qual regra sensata de interpretação essa pessoa entende que significa outra coisa quando a mesma alusão é encontrada numa promessa? Parece profana ninharia, quando tal linguagem é encontrada numa promessa, fazer com que signifique menos do que quando encontrada num mandamento.

Esta promessa, no que respeita à igreja, em algum período de sua história, é incondicional e o seu cumprimento é certo. Mas com relação a qualquer indivíduo ou geração particular da igreja, o seu cumprimento está necessariamente condicionado à fé de cada um. A igreja, na qualidade de corpo, com certeza nunca recebeu este novo concerto. Contudo é certo que multidões de todas as eras da dispensação cristã o receberam. E Deus apressará o tempo em que será completamente cumprido, quando então não haverá necessidade de alguém dizer a seu irmão: "Conhece o Senhor; porque todos me conhecerão, desde o menor deles até ao maior" (Hb 8.11).

Deve ser entendido que esta promessa foi feita à igreja cristã e não à igreja judaica. Os santos sob a antiga dispensação não tinham razão para esperar o cumprimento desta e de outras promessas semelhantes, porque o seu cumprimento foi expressamente adiado até o começo da dispensação cristã.

Diz-se que nada mais é prometido aqui a não ser a regeneração. Mas os santos do Antigo Testamento não eram regenerados? Contudo a Bíblia é explicita ao afirmar que eles não receberam as promessas. "Todos estes morreram na fé, sem terem recebido as promessas, mas, vendo-as de longe, e crendo nelas, e abraçando-as, confessaram que eram estrangeiros e peregrinos na terra. E todos estes, tendo tido testemunho pela fé, não alcançaram a promessa, provendo Deus alguma coisa melhor a nosso respeito, para que eles, sem nós, não fossem aperfeiçoados" (Hb 11.13,39,40). Vemos que estas promessas não foram recebidas pelos santos do Antigo Testamento. Não obstante, eles eram regenerados.

Também afirma-se que a promessa implica não mais do que a perseverança final dos santos. Mas eu perguntaria: Os santos do Antigo Testamento não perseveraram? E, não obstante, acabamos de ver que os santos do Antigo Testamento não receberam estas promessas em seu cumprimento.

(3) Analisarei, a seguir, esta promessa: "Então, espalharei água pura sobre vós, e ficareis purificados; de todas as vossas imundícias e de todos os vossos ídolos vos purificarei. E vos darei um coração novo e porei dentro de vós um espírito novo; e tirarei o coração de pedra da vossa carne e vos darei um coração de carne. E porei dentro de vós o meu espírito e farei que andeis nos meus estatutos, e guardeis os meus juízos, e os observeis" (Ez 36.25-27). Sobre este texto, comento:

(a) Foi escrito dezenove anos depois do texto que examinamos há pouco em Jeremias. Refere-se com clareza à mesma época e trata-se de uma promessa da mesma bênção.

(b) Temos de admitir, nem pode ser negado, que esta é uma promessa de santificação plena. A linguagem está muito definida e detalhada. "Então"-- referindo-se a algum tempo futuro, quando vencesse o prazo -- "espalharei água pura sobre vós, e ficareis purificados". Note a primeira promessa: "E ficareis purificados". Se ficar "puro" não significa santificação plena, então o que significa?

A segunda promessa é: "De todas as vossas imundícias e de todos os vossos ídolos vos purificarei". Se ser purificado "de todas as imundícias e de todos os ídolos" não for um estado de santificação plena, então o que é?

A terceira promessa é: "E vos darei um coração novo e porei dentro de vós um espírito novo; e tirarei o coração de pedra da vossa carne e vos darei um coração de carne". Se ter um "coração limpo", um "coração novo", um "coração de carne", em oposição a um "coração de pedra" não for santificação plena, então o que é?

A quarta promessa é: "E porei dentro de vós o meu espírito e farei que andeis nos meus estatutos, e guardeis os meus juízos, e os observeis".

(c) Transformemos a linguagem destas promessas para a forma de mandamento e entendamos Deus a dizer: "Tende um coração limpo, um coração novo e um espírito novo; apartai-vos de todas as vossas iniqüidades, de todas as vossas imundícias e de todos os vossos ídolos; andai nos meus estatutos e guardai os meus juízos e os observeis". Agora quem, no exercício sóbrio da razão, duvidaria que Deus quis afirmar a exigência de um estado de santificação plena? As regras legítimas de interpretação exigiriam que o entendêssemos desse modo.

Se assim é, qual é a construção justa e adequada desta linguagem, quando encontrada numa promessa? Não hesito em dizer que, para mim, é surpreendente que alguma dúvida permaneça na mente de qualquer pessoa se, nestas promessas, Deus quis dizer tanto quanto em seus mandamentos expressos na mesma linguagem. Veja, por exemplo: "Portanto, eu vos julgarei, a cada um conforme os seus caminhos, ó casa de Israel, diz o Senhor JEOVÁ; vinde e convertei-vos de todas as vossas transgressões, e a iniqüidade não vos servirá de tropeço. Lançai de vós todas as vossas transgressões com que transgredistes e criai em vós um coração novo e um espírito novo; pois por que razão morreríeis, ó casa de Israel?" (Ez 18.30,31). Que a linguagem da promessa sob consideração signifique tanto quanto a linguagem do mandamento, é exigido por toda regra sóbria de interpretação. E quem jamais imaginou que, quando

Deus exigiu ao seu povo afastar-se de todas as iniqüidades, Ele só quisesse dizer que deveriam afastar-se de uma parte delas?

(d) Esta promessa diz respeito à igreja e não pode ser considerada como já tendo sido cumprida, de acordo com sua significação própria, em alguma era passada do cristianismo.

(e) No que tange à igreja, em algum período futuro de sua história, esta promessa é absoluta, no sentido de que será, com certeza, cumprida.

(f) É evidente que esta promessa aplica-se aos cristãos sob a nova dispensação, em vez de os judeus sob a antiga dispensação. O espalhamento de água limpa e o derramamento do Espírito parecem com clareza indicar que a promessa pertencia mais particularmente à dispensação cristã. É inegável que pertence à mesma classe de promessas, como as de Jeremias 26.31-34, Joel 2.28 e muitas outras, que manifestadamente antecipam a era do Evangelho como o tempo do cumprimento. Como estas promessas nunca foram cumpridas em sua extensão e significado, seu completo cumprimento permanece sendo realizado pela igreja na qualidade de corpo. E os que da igreja fazem parte, entendem a bênção e crêem nos seus resultados. Por isso, apropriam-se dela para o seu próprio bem.

(4) Agora examinarei a seguinte promessa: "E o mesmo Deus de paz vos santifique em tudo; e todo o vosso espírito, e alma, e corpo sejam plenamente conservados irrepreensíveis para a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo. Fiel é o que vos chama, o qual também o fará" (1 Ts 5.23,24). Sobre esta passagem, comento:

(a) Admite-se que esta é uma oração e uma promessa de santificação plena.

(b) A própria linguagem mostra que a oração e a promessa se referem a esta vida, quer para a santificação do corpo, quer para a da alma; também que os crentes podem ser preservados, não depois, mas até a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo.

(c) Esta é uma oração de inspiração, à qual está anexa uma promessa expressa de que Deus a cumprirá.

(d) O cumprimento da promessa está, segundo a sua natureza, condicionado à nossa fé, assim como a santificação sem a fé é naturalmente impossível.

(e) Se esta promessa juntamente com as que já foram examinadas e honestamente interpretadas, não resolveram completamente a questão do alcance da santificação plena nesta vida, é difícil entender como algo possa ser resolvido mediante um apelo às Escrituras.

Há outras numerosas promessas com a mesma significação às quais eu poderia encaminhar o leitor, e que, se examinadas sob a luz das regras precedentes de interpretação, seriam vistas a amontoar demonstração sobre demonstração de que esta é uma doutrina da Bíblia. Só as examine sob a luz destes princípios claros e patentes, e elas produzirão convicção.

Tendo analisado algumas das promessas em prova da posição de que um estado de santificação plena é alcançável nesta vida, prosseguirei mencionando outras considerações em defesa desta doutrina.

3. Os apóstolos esperavam evidentemente que os cristãos alcançassem este estado nesta vida. "Saúda-vos Epafras, que é dos vossos, servo de Cristo, combatendo sempre por vós em orações, para que vos conserveis firmes, perfeitos e consumados em toda a vontade de Deus" (Cl 3.12). Sobre esta passagem, comento:

(1) O objeto dos esforços de Epafras e algo que ele esperava efetuar era conduzir esses cristãos a estarem "firmes, perfeitos e consumados em toda a vontade de Deus".

(2) Se esta linguagem não descreve um estado de santificação plena, no sentido de permanente, não sei de nenhuma que o descreva. Se nos mostrarmos "firmes, perfeitos e consumados em toda a vontade de Deus" não é perfeição cristã, então o que é?

(3) Paulo sabia que Epafras estava trabalhando para esse fim e com esta expectativa. Ele informou a igreja sobre isto de tal maneira que mostrou evidente aprovação das visões e administração de Epafras.

Que o apóstolo esperava que os cristãos alcançassem esse estado continua claro no seguinte texto: "Ora, amados, pois que temos tais promessas, purifiquemo-nos de toda imundícia da carne e do espírito, aperfeiçoando a santificação no temor de Deus" (2 Co 7.1).

Não fala o apóstolo, nesta passagem, como se realmente esperasse que aqueles a quem escreveu aperfeiçoassem a santificação no temor de Deus? Observe o quanto a linguagem é forte e detalhada: "Purifiquemo-nos de toda imundícia da carne e do espírito". Se "nos purificarmos de toda imundícia da carne e do espírito, e aperfeiçoar a santidade" não é santificação plena, então o que é? Que ele nutria essa expectativa, é evidente do fato de que lhes exige que sejam purificados de toda imundícia da carne, como também do espírito. Esta passagem contempla claramente um estado distinto de um ato de consagração ou santificação, quer dizer, expressa a idéia de santificação plena, evidentemente no sentido de contínua.

4. Todos os passos intermediários podem ser dados, contudo, o fim pode ser alcançado. Certamente não há ponto em nosso progresso à santificação plena, de onde possa ser dito que não podemos avançar. A isto foi objetado que, embora todos os passos intermediários foram dados, contudo a meta nunca pode ser alcançada nesta vida, da mesma maneira que cinco podem ser divididos por três ad infinitum sem exaurir a fração. Agora esta ilustração engana a mente que a usa, como também a mente dos que a ouvem. É verdade que você nunca pode exaurir a fração dividindo cinco por três pela razão clara de que a divisão é levada ad infinitum. Não há fim. Você não pode, neste caso, dar todos os passos intermediários, porque eles são infinitos. Mas no caso da santificação plena todos os passos intermediários podem ser dados, pois há um fim ou estado de santificação plena, o qual também está em um ponto incalculavelmente aquém do infinito.

5. Que este estado pode ser alcançado nesta vida, raciocino do fato de que provisão foi feita contra todas as possibilidades de pecado. Os homens pecam somente quando são tentados, ou pelo mundo, ou pela carne ou pelo diabo. E afirma-se expressamente que, em toda tentação, provisão é feita para o nosso escape. Com certeza, se nos é possível escaparmos sem pecado sob cada tentação, então um estado de santificação plena e permanente é alcançável.

Provisão plena é feita para vencermos os três grandes inimigos de nossa alma: o mundo, a carne e o diabo.

(1) O mundo: "Porque todo o que é nascido de Deus vence o mundo; e esta é a vitória que vence o mundo: a nossa fé" (1 Jo 5.4). "Quem é que vence o mundo, senão aquele que crê que Jesus é o Filho de Deus?" (1 Jo 5.5).

(2) A carne: "Andai em Espírito e não cumprireis a concupiscência da carne" (Gl 5.16).

(3) Satanás: "O escudo da fé, com o qual podereis apagar todos os dardos inflamados do maligno" (Ef 6.16). E: "O Deus de paz esmagará em breve Satanás debaixo dos vossos pés" (Rm 16.20).

6. Deus pode executar esta obra em nós e por nós. "Por causa disso, me ponho de joelhos perante o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, do qual toda a família nos céus e na terra toma o nome, para que, segundo as riquezas da sua glória, vos conceda que sejais corroborados com poder pelo seu Espírito no homem interior; para que Cristo habite, pela fé, no vosso coração; a fim de, estando arraigados e fundados em amor, poderdes perfeitamente compreender, com todos os santos, qual seja a largura, e o comprimento, e a altura, e a profundidade e conhecer o amor de Cristo, que excede todo entendimento, para que sejais cheios de toda a plenitude de Deus" (Ef 3.14-19). Sobre esta passagem, comento:

(1) Paulo evidentemente ora pela santificação plena dos crentes nesta vida. Está implícito em estarmos "arraigados e fundados em amor" e "cheios de toda a plenitude de Deus" que somos tão perfeitos em nossa medida e de acordo com nossa capacidade, segundo Deus é. Se nos mostrarmos cheios da plenitude de Deus não implica em um estado de santificação plena, então o que implica?

(2) Que Paulo não via dificuldade no modo de Deus realizar esta obra está manifesto no que ele diz: "Ora, àquele que é poderoso para fazer tudo muito mais abundantemente além daquilo que pedimos ou pensamos, segundo o poder que em nós opera" (Ef 3.20) etc.

7. As representações bíblicas da morte são totalmente incompatíveis com ela ser um meio indispensável de santificação. A morte é representada na Bíblia como um inimigo. Mas se a morte é a única condição pela qual os homens são levados a um estado de santificação plena, sua agência é tão importante e tão indispensável quanto a influência do Espírito Santo. Quando a morte é representada na Bíblia como algo que não seja um inimigo, é porque põe fim aos sofrimentos dos santos e os introduz em um estado de glória eterna. Como é notável o contraste entre a linguagem da igreja e a da inspiração sobre neste assunto! A igreja está consolando o cristão em relação à morte, dizendo que será o fim dos seus pecados. A linguagem da inspiração, por outro lado, é que ele cessará não dos trabalhos maus, mas dos bons trabalhos e sofrimentos por Deus neste mundo. A linguagem da igreja é que ele entrará numa vida de santidade inalterável -- que será, não até então, mas a partir daí, plenamente santificado. A linguagem da inspiração mostra que por ele ser santificado, a morte será uma entrada a um estado de glória eterna.

8. Os ministros com certeza são obrigados a estabelecer um padrão definido, ao qual, como ministros de Deus, devem insistir em conformidade completa. E eu perguntaria: Que outro padrão podem e ousam estabelecer? Insistir em algo menos do que isto é virar Papa e conceder indulgência para pecar. Mas estabelecer este padrão e depois insinuar que a conformidade a ele não é, de fato, alcançável nesta vida, é como tomar parte do pecado contra Deus, como seria insistir em teoria no arrependimento e depois declarar que na prática este não é possível. Deixe-me aqui perguntar aos cristãos o que eles esperam que os ministros preguem. Você acha que eles têm o direito de ser coniventes com o pecado em você, ou insistir em algo que seja um fato praticável, como por exemplo: Você deve abandonar toda a iniqüidade? Pergunto: Por qual autoridade um ministro pode pregar menos do que isso? E como algum ministro ousará propor o dever como uma teoria e depois não insistir tratar-se de um assunto prático, como algo a ser esperado de todo súdito do Reino de Deus?

9. Uma negação desta doutrina tem a tendência natural de gerar a mesma apatia testemunhada na igreja. Os religiosos prosseguem no pecado sem muita convicção de sua maldade. O pecado, sem nenhum rubor, difunde-se em silencio por todos os lugares, até na igreja de Deus, e não enche os cristãos de horror, porque esperam sua existência como algo natural. Diga a um jovem convertido que ele deve ter a expectativa de se desviar e o fará, é óbvio, com comparativamente pequeno remorso, porque há de encarar tal circunstância como um tipo de necessidade. E sendo levado a esperar o pecado, alguns meses depois da sua conversão você o encontrará longe de Deus e não horrorizado com o seu estado. Da mesma maneira, ensine a idéia entre os cristãos de que não se espera que abandonem todos os pecados e, claro, eles cairão em pecado com indiferença comparativa. Reprove-os por seus pecados e eles dirão: "Somos criaturas imperfeitas; não temos a pretensão de sermos perfeitos, nem esperamos que jamais o sejamos neste mundo". Muitas respostas como estas os afastarão da outrora tendência que desonra a Deus e arruina a alma de uma negação desta doutrina.

10. Uma negação desta doutrina prepara a mente dos ministros para contemporizar e tolerar a grande iniqüidade em suas igrejas. Se crêem nesta doutrina que afirma ser natural esperar que os crentes pequem, é claro que toda a sua pregação, seu espírito e comportamento serão direcionados a gerar um grande grau de apatia entre os cristãos com relação aos seus pecados abomináveis.

11. Se esta doutrina não é verdadeira, o quão profano e blasfemo é o concerto de toda igreja pertencente a qualquer denominação evangélica. Toda igreja exige que seus membros façam um concerto solene com Deus e com a igreja, na presença de Deus e dos anjos, e com as mãos sobre os emblemas do corpo partido e do sangue vertido do bendito Jesus, a fim de que "renunciando à impiedade e às concupiscências mundanas, vivamos neste presente século sóbria, justa e piamente" (Tt 2.12). Se a doutrina do alcance da santificação plena nesta vida não é verdadeira, que escárnio profano é este concerto! É um concerto para viver em um estado de santificação plena, feito sob as circunstâncias mais solenes, obrigado pelas sanções mais terríveis e insistido pelo ministro de Deus que distribui o pão e o vinho. Que direito tem algum ministro na terra de exigir menos do que isto? E, novamente, que direito tem algum ministro na terra de exigir isto, a menos que seja uma coisa praticável e a menos que seja esperado daquele que faz o voto?

Suponha que quando este concerto foi proposto a um convertido que está a ponto de se unir à igreja, ele fosse levado ao seu quarto, se derramasse diante do Senhor e perguntasse se seria certo fazer tal concerto e se a graça do Evangelho o capacitaria a cumpri-lo? Você acha que o Senhor Jesus responderia que se fizesse o concerto, certamente iria e deveria viver na violação habitual do concerto enquanto tivesse vida e que a graça divina não seria suficiente para capacitá-lo a guardar esse concerto? Em tal caso, teria o convertido o direito de aceitar esse concerto? Não. Não mais do que teria direito de mentir ao Espírito Santo.

Há muito tempo que tem sido sustentado por teólogos ortodoxos que aquele que não objetiva viver uma vida sem pecado não é cristão -- a menos que tenha em mira a perfeição, ele claramente consente em viver em pecado, sendo, então, impenitente. Foi dito, e é minha opinião sincera, que se alguém, no firme propósito do seu coração, não tem como alvo a abstinência plena do pecado e ser conformado inteiramente à vontade de Deus, ele ainda não é regenerado e nem sequer deseja deixar de prevaricar contra Deus. Nos Comentários de Barnes sobre 2 Coríntios 8.1, temos o seguinte:

"O alvo incessante e firme de todo cristão deve ser a perfeição -- a perfeição em todas as coisas -- no amor de Deus, de Cristo, do homem; perfeição de coração, de sentimento, de emoção; perfeição em suas palavras, em seus planos, em seus procedimentos com as pessoas; perfeição em suas orações e em sua submissão à vontade de Deus. Ninguém pode ser cristão que não deseje sinceramente e que constantemente não objetive a perfeição. Ninguém que é amigo de Deus pode consentir num estado de pecado e que esteja satisfeito e contente que não seja tão santo quanto Deus é santo. E todo aquele que não tem desejo de ser perfeito como Deus é e que não torna seu objetivo diário e constante ser tão perfeito quanto Deus, pode considerar demonstravelmente tão certo que ele não tem verdadeira religião."

Se isto é assim, eu perguntaria: Como alguém pode ter em mira e intentar fazer o que sabe ser impossível? Não é contradição dizer que alguém pode intentar fazer o que sabe não poder fazer? A isto foi objetado que, se verdadeiro, prova que ninguém jamais foi cristão se não creu nesta doutrina. A isto, respondo:

Um homem pode crer no que na verdade é um estado de santificação plena e almejar alcançá-lo, embora não o chame por esse nome. Penso que isto de fato acontece com os cristãos, pois eles com muita mais freqüência alcançariam o que objetivam, se soubessem como se apropriar da graça de Cristo para as suas próprias circunstâncias. Por exemplo, a senhora do presidente Edwards cria firmemente que podia alcançar um estado de consagração plena. Ela o objetivou e manifestadamente o atingiu e, contudo, tal era sua visão da depravação constitucional, que não chamou o seu estado de santificação plena. Tem sido comum os cristãos suporem que um estado de consagração plena é alcançável, mas enquanto acreditam na pecaminosidade de sua natureza, claro que não chamariam a santificação de consagração plena. A Sra. Edwards creu, objetivou e alcançou a consagração plena. Ela teve como alvo o que ela creu ser atingível e não poderia objetivar nada mais. Ela o chamou pelo mesmo nome que o seu marido, o qual se opunha à doutrina da perfeição cristã conforme é sustentada pelos metodistas wesleyanos, manifestadamente com base em suas noções da depravação física. Não me importo como este estado é chamado, se a coisa for completamente explicada e insistida junto com as condições para alcançá-la. Chame pelo que você quiser, perfeição cristã, inclinação divina, a plena certeza de fé ou esperança ou um estado de consagração plena -- por todas estas expressões eu entendo a mesma coisa. E é certo que por qualquer nome que seja chamada, a coisa deve ter como objetivo ser alcançada. A praticabilidade de sua obtenção deve ser admitida, ou não pode ser objetivada. E agora eu pergunto humildemente: Pregar algo menos do que isso não é dar aprovação ao pecado?

12. Outro argumento a favor desta doutrina é que o Evangelho tem muitas vezes não só temporariamente, mas permanente e perfeitamente, vencido toda forma de pecado em indivíduos diferentes. Quem já não viu as luxúrias mais bestiais, a embriaguez, a lascívia e todo tipo de abominação por muito tempo cultivados e completamente inveterados, serem totalmente e para sempre vencidos pelo poder da graça de Deus? Agora como é que isto foi possível? Só levando o pecado completamente sob a luz do Evangelho e mostrando ao indivíduo a relação que a morte de Cristo sustentou com aquele pecado.

Nada tem mais desejo de vencer toda e qualquer forma de pecado, senão a mente a ser batizada plenamente na morte de Cristo e ver os pontos de apoio dos próprios pecados nos sofrimentos, agonias e morte do Jesus bendito. Deixe-me declarar um fato para ilustrar o que quero dizer. Um fumante habitual e inveterado dentre os meus conhecidos, depois de ter sido assediado, em vão, com quase todo argumento para induzi-lo a deixar o poder do vício e renunciar seu hábito, em certa ocasião acendeu o cachimbo e estava a ponto de pô-lo na boca quando a investigação começou: Cristo morreu para comprar este prazer vil para mim? A relação percebida da morte de Cristo com esse pecado imediatamente quebrou o poder do hábito e, daquele dia em diante, ele foi liberto. Eu poderia relatar muitos outros fatos mais notáveis do que este, quando uma visão semelhante da relação de um pecado particular com a expiação de Cristo não só quebrou em um momento o poder do hábito, mas destruiu completamente e para sempre o apetite de prazeres semelhantes. E em numerosos casos, quando o apetite não foi inteiramente vencido, a vontade foi dada com eficiência abundante e permanente para efetivamente controlá-lo. Se os hábitos mais inveterados de pecado e até os que envolvem conseqüências físicas e que têm degradado a constituição física de forma profunda e tornado-a fonte de dominante tentação para a mente, podem e freqüentemente foram totalmente quebrados e vencidos para sempre pela graça de Deus, por que se duvida que pela mesma graça um homem pode triunfar sobre todo pecado e isso para sempre?

13. Se esta doutrina não é verdadeira, qual é a verdade sobre o assunto? Certamente é de grande importância que os ministros sejam definidos em seus ensinos, e se não se espera que os cristãos sejam conformados plenamente à vontade de Deus nesta vida, o quanto é que se espera deles? Quem pode dizer: Até este ponto tu podes e deves ir, porém não mais? É de certo absurdo, para não dizer ridículo, que os ministros sempre pressionem os cristãos a obtenções cada vez mais elevadas, dizendo a cada passo que podem e têm de subir cada vez mais alto e, não obstante, informar desde o princípio que se espera que eles fiquem aquém de todo o dever, que podem de fato ser melhores do que são, muito melhores, indefinidamente melhores, contudo não se espera que cumpram todo o dever. Sempre me dói ouvir homens pregarem que têm medo de se entregar em favor de toda verdade e que evidentemente temem ficar aquém dos seus ensinos, de insistir que os homens permaneçam "firmes, perfeitos e consumados em toda a vontade de Deus" (Cl 4.12). Para serem consistentes, eles estão evidentemente perplexos e bem que podem estar, pois na verdade não há coerência em suas visões e ensinos. Se eles não propõem que os homens devam fazer e se espera que façam todo o seu dever, estão tristemente com uma falta de saber o que propor. É evidente que têm muitas dúvidas sobre insistir menos do que isto e ainda temem ir à plena extensão do ensino apostólico sobre este assunto. E em seus esforços em lançar termos qualificados e advertências para evitar a impressão de que crêem na doutrina da santificação plena, colocam-se numa posição verdadeiramente desajeitada. Casos têm ocorrido em que foi perguntado a ministros até onde podemos ir, temos de ir e é esperado que vamos, na dependência da graça de Cristo, e como os homens santos podem ser, se esperam que sejam e devem ser nesta vida. Eles não poderiam dar outra resposta senão que podem ser muito melhores do que são. Agora esta indefinição é uma grande pedra de tropeço para a igreja. Não pode estar de acordo com os ensinos do Espírito Santo.

14. A tendência de uma negação desta doutrina é, na minha opinião, prova conclusiva de que a doutrina em si tem de ser verdadeira. Muitos desenvolvimentos na recente história da igreja lançam luz sobre este assunto. Quem não vê que os fatos desenvolvidos na reforma da temperança têm um esteio direto e poderoso nesta questão? Foi averiguado que não há possibilidade de completar a reforma da temperança, exceto adotando-se o princípio da abstinência total de todas as bebidas intoxicantes. Que um conferencista sobre a temperança saia como evangelista para promover o reavivamento no tema da temperança -- que ele ataque a embriaguez, enquanto admite e defende o uso moderado de álcool, ou pelo menos insinue que a abstinência total não é esperada ou praticável. Nesta fase da reforma da temperança todos podem ver que tal homem não pode fazer progresso; que ele seria empregado como criança a construir uma represa de areia para obstruir as correntezas de águas caudalosas. E tão certo quanto as causas produzem seus efeitos que nenhuma reforma permanente pode ser efetuada sem adotar e insistir no princípio da abstinência total.

E se é verdade no que respeita à reforma da temperança, quanto mais quando aplicado aos temas da santidade e do pecado. Um homem pode, por alguma possibilidade, mesmo com sua própria força, vencer o hábito da embriaguez e reter o que poderia ser chamado de uso moderado do álcool. Mas tal coisa não é possível numa reforma do pecado. Não há prazer temperado no pecado. De fato, o pecado nunca é vencido por um homem em sua própria força. Se ele admite em seu credo a necessidade de algum grau de pecado, ou se permite na prática algum grau de pecado, torna-se impenitente, consente em viver em pecado e, é claro, entristece o Espírito Santo, sendo o resultado certo disso uma reincidência a um estado de escravidão legal ao pecado. E esta é provavelmente a verdadeira história de muitos cristãos professos na igreja. É justamente o que se poderia esperar das visões e práticas da igreja sobre este assunto.

O segredo da apostasia é que as reformas não são efetuadas profundamente o bastante. Os cristãos não estão firmes de todo o coração a ter como alvo uma libertação veloz de todo o pecado, mas, pelo contrário, são deixados e em muitas instâncias ensinados a serem indulgentes com a expectativa de que pecarão enquanto viverem. Eu provavelmente nunca esquecerei o efeito produzido em minha mente ao ler, quando jovem convertido, no diário de David Brainerd, que ele nunca esperava fazer alguma obtenção considerável na santidade durante esta vida. Hoje posso ver com facilidade que esta era uma conclusão natural da teoria da pecaminosidade física por ele defendida. Mas não percebendo isto na ocasião, não duvido que esta expressão de suas opiniões tivesse por muitos anos causado um efeito muito prejudicial em mim. Levou-me a argumentar que se um homem como David Brainerd não esperava obter muito avanço na santidade ao longo desta vida, era-me em vão esperar tal coisa.

O fato é que se há algo importante para as altas obtenções na santidade e para o progresso da obra de santificação nesta vida, é a adoção do princípio da abstinência total do pecado. A abstinência total do pecado deve ser o lema de todo homem, ou com certeza o pecado o devastará como uma inundação. Isto possivelmente não pode ser um verdadeiro princípio na temperança, que deixa as causas que produzem a embriaguez operarem em sua plena força. Nem pode ser verdade com respeito à santidade, que deixa a raiz exposta e as causas certas do declínio espiritual e da apostasia em ação no próprio coração da igreja. E estou plenamente convicto de que até que evangelistas e pastores adotem e executem na prática o princípio da abstinência total de todo o pecado, eles com certeza vão se achar, poucos meses depois, chamados a fazer o seu trabalho outra vez, como um conferencista da temperança faria se admitisse o uso moderado de álcool.

Outra vez, quem não sabe que chamar os pecadores ao arrependimento e ao mesmo tempo informá-los de que não vão, não podem e não se espera que se arrependam, evitaria o arrependimento deles para sempre? Suponha que você diga a um pecador: "Você é naturalmente capaz de se arrepender, mas é certo que nunca se arrependerá nesta vida, com ou sem o Espírito Santo". Quem não vê que tal ensino evitaria o arrependimento de alguém tão seguramente quanto creria nele? Dizer ao religioso: "Você é naturalmente capaz de ser conformado completamente segundo a vontade de Deus, mas é certo que nunca o será nesta vida, quer por sua própria força, quer pela graça de Deus"; se este ensino for crido, vai da mesma maneira evitar a santificação, como o outro ensino evitaria o arrependimento do pecador. Posso falar por experiência própria sobre este assunto. Enquanto eu instilava as visões comuns, eu era muitas vezes instrumento para trazer os cristãos sob grande convicção a um estado de arrependimento temporário e fé. Mas se deixava de exortá-los a um ponto onde se tornassem familiarizados com Cristo no que tange a permanecer nEle, claro que logo caíam novamente no seu estado anterior. Raramente vi -- e hoje posso entender que eu não tinha razão para esperar ver de acordo com os ensinos que então eu dava -- tal estado de princípio religioso, tal andar firme e confirmado com Deus entre os cristãos, como tenho visto desde a mudança em minha visão e meu ensino.

 

Retorno a Index Teologia Sistematica