A VERDADE DO EVANGELHO
TEOLOGIA SISTEMÁTICA

Charles Finney

 
AULA 15

GOVERNO HUMANO

 

Os governos humanos fazem parte do governo moral divino.

Na discussão desse assunto irei:

Inquirir sobre o fim último da criação divina.

Vimos em aulas anteriores que Deus é um agente moral, o que existe por si e é supremo; sendo, portanto, Ele mesmo, como regente de tudo, sujeito à lei moral e observante dela em toda sua conduta. Ou seja, sua própria inteligência infinita deve confirmar que certo curso de vontade é adequado, apropriado e correto nEle. Essa idéia ou afirmação é lei para sua pessoa; e a isso deve conformar-se sua vontade; caso contrário, Ele não seria bom. Isso é lei moral, uma lei fundamentada na natureza eterna e auto-existente de Deus. Essa lei exige e deve exigir benevolência em Deus. Benevolência é boa vontade. A inteligência de Deus deve confirmar que Ele deve desejar o bem pelo próprio valor intrínseco dEle. Ele deve confirmar sua obrigação de escolher o máximo bem possível como o grande fim de sua existência. Se Deus é bom, o máximo bem dEle mesmo e do universo deve ter sido o fim que Ele tinha em vista na obra da criação. Isso é de valor infinito e deve ser desejado por Deus. Se Deus é bom, esse deve ter sido seu fim. Também vimos:

 

Que os governos providencial e moral são meios indispensáveis para garantir o máximo bem do universo.

 

O máximo bem dos agentes morais é condicionado pela santidade deles. A santidade consiste em conformidade com a lei moral. A lei moral implica governo moral. O governo moral é um governo de leis e motivos morais. Os motivos são apresentados pelo governo providencial; e o governo providencial é, portanto, um meio do governo moral. Os governos providencial e moral devem ser indispensáveis para garantir o máximo bem do universo.

 

Os governos civil e familiar são indispensáveis para garantir esse fim, sendo, portanto, de fato parte dos governos providencial e moral de Deus.

 

Na discussão desse assunto observo:

1. Os seres humanos não concordarão em opinião sobre um assunto, sem que haja grau equivalente de conhecimento. Não existe nem existirá uma comunidade humana em que os membros concordem sobre todos os assuntos. Isso cria uma necessidade de legislação e adjudicação humana para aplicar os grandes princípios da lei moral a todos os interesses humanos. Há inúmeros desejos e necessidades humanos que não podem ser atendidos de modo adequado, exceto pela instrumentação de governos humanos.

2. Essa necessidade continuará existindo enquanto os seres humanos existirem neste mundo. Isso é tão certo quanto os fatos de que o corpo humano sempre necessitará de alimento e vestimenta; e de que a alma humana sempre necessitará de instrução; e de que nenhum meio de instrução surgirá de modo espontâneo, sem custo e labor. Isso é tão certo quanto o fato de que os homens de qualquer era e circunstância jamais possuirão talentos e graus de informação iguais em todos os assuntos. Se todos os homens fossem perfeitamente santos e dispostos a fazer o correto, a necessidade de governos morais não ficaria descartada, porque essa necessidade é fundamentada na ignorância da humanidade, ainda em muito agravada por sua perversão. As decisões dos legisladores e juizes devem ter autoridade, de modo que estabeleçam questões de discordância de opinião, para tentar proteger de imediato todos os partidos.

A Bíblia não só manifesta a existência de governos humanos, como entende que sua autoridade e direito de punir os malfeitores e proteger os justos deriva de Deus. Mas:

3. Os governos humanos são claramente reconhecidos na Bíblia como parte do governo moral divino.

"Ele muda os tempos e as horas; ele remove os reis e estabelece os reis; ele dá sabedoria aos sábios e ciência aos inteligentes" (Dn 2.21); "Esta sentença é por decreto dos vigiadores, e esta ordem, por mandado dos santos; a fim de que conheçam os viventes que o Altíssimo tem domínio sobre os reinos dos homens; e os dá a quem quer e até ao mais baixo dos homens constitui sobre eles"; "Serás tirado de entre os homens, e a tua morada será com os animais do campo, e te farão comer erva como os bois, e serás molhado do orvalho do céu; e passar-se-ão sete tempos por cima de ti, até que conheças que o Altíssimo tem domínio sobre o reino dos homens e o dá a quem quer" (Dn 4.17,25); "E foi tirado dentre os filhos dos homens, e o seu coração foi feito semelhante ao dos animais, e a sua morada foi com os jumentos monteses; fizeram-no comer erva como os bois, e pelo orvalho do céu foi molhado o seu corpo, até que conheceu que Deus, o Altíssimo, tem domínio sobre os reinos dos homens e a quem quer constitui sobre eles" (Dn 5.21); "Toda alma esteja sujeita às autoridades superiores; porque não há autoridade que não venha de Deus; e as autoridades que há foram ordenadas por Deus. Por isso, quem resiste à autoridade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos a condenação. Porque os magistrados não são terror para as boas obras, mas para as más. Queres tu, pois, não temer a autoridade? Faze o bem e terás louvor dela. Porque ela é ministro de Deus para teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, pois não traz debalde a espada; porque é ministro de Deus e vingador para castigar o que faz o mal. Portanto, é necessário que lhe estejais sujeitos, não somente pelo castigo, mas também pela consciência. Por esta razão também pagais tributos, porque são ministros de Deus, atendendo sempre a isto mesmo. Portanto, dai a cada um o que deveis: a quem tributo, tributo; a quem imposto, imposto; a quem temor, temor; a quem honra, honra" (Rm 13.1-7); "Admoesta-os a que se sujeitem aos principados e potestades, que lhes obedeçam e estejam preparados para toda boa obra" (Tt 3.1); "Sujeitai-vos, pois, a toda ordenação humana por amor do Senhor; quer ao rei, como superior; quer aos governadores, como por ele enviados para castigo dos malfeitores e para louvor dos que fazem o bem" (1 Pe 2.13,14). Essas passagens provam de modo conclusivo que Deus estabelece os governos humanos como partes do governo moral.

4. E dever de todos os homens auxiliar o estabelecimento e sustento do governo humano.

Como a grande lei da benevolência, ou a boa vontade universal, exige a existência de governos morais, todos os homens estão sob a obrigação perpétua e inalterável de auxiliar seu estabelecimento e manutenção. Em governos populares ou eleitos, tendo todos os homens direito ao voto, todo ser humano que possua influência moral é obrigado a exercer essa influência na promoção da virtude e felicidade. Uma vez que os governos humanos são claramente indispensáveis para o máximo bem do homem, eles têm o dever de exercer sua influência para garantir uma legislação que esteja de acordo com a lei de Deus. A obrigação de os seres humanos sustentarem os governos humanos e obedecerem a eles naquilo que legislarem dentro dos princípios da lei moral é tão inalterável como a própria lei moral.

5. Responderei a objeções.

 

Objeção: 1. O reino de Deus é representado na Bíblia como subversão de todos os outros reinos.

Resposta: E verdade, mas tudo o que se pode inferir disso é que virá um tempo em que Deus será considerado o soberano supremo e universal do universo, quando sua lei será considerada universalmente obrigatória; quando todos os reis, legisladores e juizes agirão como servos seus, declarando, aplicando e administrando os grandes princípios de sua lei em todos os interesses dos seres humanos. Assim Deus será o soberano supremo e os regentes terrenos serão governantes, reis e juizes sob Ele, atuando por sua autoridade, conforme se revela na Bíblia.

 

Objeção: 2. Alega-se que Deus só estabelece governos humanos de maneira providencial e que Ele não aprova a administração egoísta e perversa deles; que Ele só os usa de maneira providencial, como faz com Satanás, para a promoção dos próprios desígnios.

Resposta: Deus não ordena em parte alguma que a humanidade obedeça a Satanás, mas lhes ordena que obedeçam a magistrados e governantes. "Toda alma esteja sujeita às autoridades superiores; porque não há autoridade que não venha de Deus; e as autoridades que há foram ordenadas por Deus" (Rm 13.1); "Sujeitai-vos, pois, a toda ordenação humana por amor do Senhor; quer ao rei, como superior; quer aos governadores, como por ele enviados para castigo dos malfeitores e para louvor dos que fazem o bem" (1 Pe 2.13, 14).

Em parte alguma Deus reconhece Satanás como seu servo, enviado e estabelecido por Ele para administrar a justiça e executar a ira contra os perversos; mas o faz em relação aos governos humanos. "Por isso, quem resiste à autoridade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos a condenação. Porque os magistrados não são terror para as boas obras, mas para as más. Queres tu, pois, não temer a autoridade? Faze o bem e terás louvor dela. Porque ela é ministro de Deus para teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, pois não traz debalde a espada; porque é ministro de Deus e vingador para castigar o que faz o mal. Portanto, é necessário que lhe estejais sujeitos, não somente pelo castigo, mas também pela consciência. Por esta razão também pagais tributos, porque são ministros de Deus, atendendo sempre a isto mesmo" (Rm 13.2-6).

É de fato verdade que Deus nada aprova que seja impiedoso e egoísta nos governos humanos. Ele também não apoiava o que era impiedoso e egoísta nos escribas e fariseus; mesmo assim Cristo disse aos discípulos: "Na cadeira de Moisés, estão assentados os escribas e fariseus. Observai, pois, e praticai tudo o que vos disserem; mas não procedais em conformidade com as suas obras, porque dizem e não praticam" (Mt 23.2,3). Aqui se reconhece o princípio simples do senso comum: devemos obedecer quando o que se exige não é incoerente com a lei moral, qualquer que seja o caráter ou o motivo do governante. Devemos sempre obedecer de coração como ao Senhor, e não a homens, rendendo obediência aos magistrados para honra e glória de Deus, como se fosse um serviço a Ele.

 

Objeção: 3. Diz-se que os cristãos devem deixar os governos humanos para a administração dos ímpios, e não se distraírem da obra de salvar almas, para interferir em governos humanos.

Resposta: Apoiar e assistir um bom governo não é distrair-se da obra de salvar almas. A promoção da ordem e da felicidade pública e privada é um dos meios indispensáveis para fazer o bem e salvar almas. Não faz sentido admitir que os cristãos têm a obrigação de obedecer aos governos humanos mas, mesmo assim, não têm a obrigação de escolher aqueles que devem governar.

 

Objeção: 4. Afirma-se que somos ordenados a não nos vingarmos, que "Minha é a vingança; eu recompensarei, diz o Senhor" (Rm 12.19). Diz-se que se não posso vingar ou reparar os danos de minha pessoa, não posso fazê-lo por meio do governo humano.

Resposta: Não se segue que, pelo fato de não se poder tomar para si a reparação dos próprios danos por uma inflição sumária de punição contra o transgressor, os governos humanos não possam puni-los. Todos os danos privados são injúria pública e independentemente de alguma consideração particular do interesse próprio, os magistrados têm obrigação de punir o crime pelo bem público. Ainda que Deus nos tenha proibido expressamente de reparar seus danos administrando castigos pessoais ou privados, Ele reconhece expressamente o direito e faz da punição de crimes dever dos magistrados públicos.

 

Objeção: 5. Alega-se que o amor é tão melhor que a lei, que onde reina o amor no coração, é possível dispensá-la de maneira universal.

Resposta: Isso supõe que, se houver só amor, não é preciso haver regra de dever, qualquer revelação que dirija o amor em seus esforços para garantir o fim a que se destina. Mas isso é totalmente falso. A objeção desconsidera o fato de que a lei é a regra de dever em todos os mundos e que as sanções legais formam uma parte indispensável daquele círculo de motivos adequados à natureza, relações e governo dos seres morais.

 

Objeção: 6. Afirma-se que os cristãos têm algo mais a fazer além de influir na política.

Resposta: Num governo popular, a política é parte importante da religião. Nenhum homem consegue ser benevolente ou religioso, na plena amplitude de sua obrigação, sem interessar-se, em maior ou menor grau, pelas questões do governo humano. É verdade que os cristãos têm algo mais a fazer do que ir a uma festa para realizar o mal ou influir na política de modo egoísta ou ímpio. Mas eles têm a obrigação de interferir na política nos governos populares, porque têm a obrigação de buscar o bem universal de todos os homens, e esse é o único departamento dos interesses humanos que afeta materialmente todos os seus interesses mais elevados.

 

Objeção: 7. Diz-se que os governos humanos não são expressamente autorizados em parte alguma na Bíblia.

Resposta: Isso é um erro. Tanto sua existência como sua legitimidade são reconhecidas do modo mais expresso possível nas escrituras acima citadas. Mas se Deus não os autorizou expressamente, ainda seria correto e dever da humanidade instituir governos humanos, porque são claramente exigidos pelas necessidades da natureza humana. É verdade primeira que tudo o que seja essencial ao máximo bem dos seres morais em qualquer mundo, têm eles o direito de buscar e são obrigados a buscar de acordo com os melhores ditames da razão e da experiência. Assim, desde que os homens necessitem de alguma autoridade expressa para estabelecer governos humanos, não seria possível, pelo silêncio das Escrituras, nenhuma inferência que tornasse seu estabelecimento ilegítimo. Tem-se demonstrado nessas aulas sobre governo moral que a lei moral é uma unidade -- que se trata daquela regra de ação que está de acordo com a natureza, relações e circunstâncias dos seres morais -- que tudo o que esteja de acordo com a natureza, relações e circunstâncias dos seres morais e seja por elas exigido é-lhes obrigatório. Assim, se as Escrituras fossem de todo silentes (o que não ocorre) sobre o assunto dos governos morais e sobre o assunto do governo familiar, como o são de fato sobre muitíssimos assuntos importantes, isso não seria objeção à legitimidade e conveniência, necessidade e dever de estabelecer governos morais.

 

Objeção: 8. Diz-se que os governos humanos são fundamentados na força e por ela mantidos e que isso não é coerente com o espírito do Evangelho.

Resposta: Não pode haver diferença entre o espírito do Antigo e do Novo Testamento, ou entre o espírito da Lei e o Evangelho, a menos que Deus tenha mudado e a menos que Cristo tenha tornado nula a lei por meio da fé, o que é impossível. "Anulamos, pois, a lei pela fé? De maneira nenhuma! Antes, estabelecemos a lei" (Rm 3.32). Governos humanos justos, e só estes são defendidos, não exercerão força, a menos que se o exija para promover o máximo bem público. Caso seja necessário para esse fim, jamais pode estar errado. Antes, deve ser obrigação de todos os governos humanos infligir penalidades quando sua inflição for exigida pelo interesse público.

 

Objeção: 9. Alguns dizem que o governo eclesiástico é suficiente para suprir as necessidades do mundo, sem governo secular ou estatal.

Resposta: Quê! Governos eclesiásticos regulando o comércio, resolvendo problemas internos como estradas, pontes e impostos e assumir a gerência de todos os interesses comerciais do mundo! Absurdo e impossível! O governo eclesiástico nunca foi estabelecido para tal fim; mas simplesmente para regular os interesses espirituais, em contraste com os interesses seculares, dos homens -- para julgar ofensores e infligir punição espiritual e jamais para causar perplexidade e embaraço para si próprio, gerindo negócios e interesses comerciais do mundo.

 

Objeção: 10. Diz-se que se todo o mundo fosse santo, as penalidades legais não seriam necessárias.

Resposta: Se todos os homens fossem perfeitamente santos, a execução das penalidades não seria necessária; mas, mesmo assim, se existissem leis, seria preciso que houvesse penalidades; e seria tanto direito como dever dos magistrados infligi-las sempre em alguma ocasião em que tornasse necessária sua execução. Mas o estado do mundo suposto não se apresenta e, enquanto o mundo for como é, será preciso que as leis permaneçam e sejam impostas.

 

Objeção: 11. Afirma-se que o governo familiar é a única forma de governo aprovada por Deus.

Resposta: Trata-se de afirmação ridícula, porque Deus ordena de maneira igualmente expressa a obediência aos magistrados e aos pais. Para Ele o dever de os magistrados punirem o crime é tão absoluto quanto o de os pais punirem os filhos desobedientes. O direito de governo familiar, ainda que ordenado por Deus, não é fundamentado na vontade arbitrária de Deus, mas no máximo bem dos seres humanos; de modo que o governo familiar seria necessário e obrigatório, mesmo que Deus não o tivesse ordenado. Assim o governo humano não se fundamenta na vontade arbitrária de Deus, mas nas necessidades dos seres humanos. Quanto maior a comunidade, tanto mais absoluta a necessidade de governo. Se no pequeno círculo da família são necessárias leis e penalidades, tanto mais nas comunidades maiores de estados e nações. Ora, nem o regente de uma família nem qualquer outro regente humano têm o direito de legislar de modo arbitrário ou de promulgar ou impor outras leis, quaisquer que sejam, exceto as exigidas pela natureza, relações e circunstâncias dos seres humanos. Nada pode ser obrigatório aos seres morais, exceto o que seja coerente com sua natureza, relações e circunstâncias. Mas os seres humanos têm a obrigação de estabelecer governos familiares, governos estaduais, governos nacionais e, em suma, qualquer governo que seja requerido para instrução, governo, virtude e felicidade universal do mundo ou alguma porção dele.

Os cristãos, portanto, têm algo mais a fazer, além de confundir o direito de governo com o abuso desse direito pelos ímpios. Em vez de destruir governos humanos, os cristãos têm a obrigação de reformá-los e apoiá-los. Tentar destruir, em lugar de reformar governos humanos, é o mesmo princípio muitas vezes almejado por aqueles que tentam destruir a Igreja, em vez de reformá-la. Esses são os que, desgostosos com os abusos do cristianismo praticado na Igreja, parecem propensos a destruir por completo a Igreja, como meio de salvar o mundo. Mas que prática insensata! Admite-se que os egoístas precisam dos limites das leis e devem senti-las; mas ainda se alega que os cristãos jamais devem fazer parte na restrição imposta a eles pela lei. Mas suponham que os perversos concordem entre si em não terem leis e, assim, não tentarem limitar a si mesmos ou uns aos outros pela lei; não seria direito e dever dos cristãos procurar a limitação deles pela influência de um governo íntegro? Seria estranho que homens egoístas necessitassem dos limites da lei, mas, mesmo assim, que os cristãos não tivessem o direito de suprir essa necessidade sustentando os governos que os restringiria. É correto e melhor que haja lei. É até absolutamente necessário que haja lei. A benevolência universal a exige; é possível então ser errado os cristãos se ocuparem dela?

 

Demarcação dos limites ou fronteiras do direito de governo

Observem que o fim do governo é o máximo bem dos seres humanos, como parte do bem universal. Toda legislação humana válida deve propor isso como um fim, e nenhuma legislação pode possuir alguma autoridade que não tenha o máximo bem do todo como seu fim. Nenhum ser pode criar leis de maneira arbitrária. Toda lei para o governo de agentes morais deve ser lei moral, ou seja, deve ser uma regra de ação mais adequada à natureza e relações. Toda legislação humana válida deve ser apenas declaração dessa única lei. Nada além disso tem alguma possibilidade de ser lei. Deus não impõe qualquer decreto, mas os estabelece conforme declara a lei comum do universo; se assim não fizesse, não poderiam ser obrigatórios. A legislação arbitrária jamais pode ser realmente obrigatória.

O direito do governo humano é fundamentado no valor intrínseco do bem do ser, sendo condicionado por sua necessidade como meio e fim. Na medida em que a legislação e o controle são indispensáveis para esse fim, nessa medida, e não além, estende-se o direito de governar. Toda legislação e todas as constituições que não sejam fundamentadas nessa base e não reconheçam a lei moral como a única lei do universo são nulas e vãs, e todas as tentativas de estabelecê-las e impô-las são tirania e usurpação odiosa. Os seres humanos podem formar constituições, estabelecer governos e decretar estatutos com o propósito de promover a máxima virtude e felicidade do mundo e para declaração e cumprimento da lei moral, na exata medida em que os governos humanos sejam essenciais para esse fim, mas nem um pouco além, em absoluto.

Segue-se que nenhum governo é legítimo ou inocente se não reconhece a lei moral como a única lei universal, e Deus como o Legislador e Juiz Supremo a que as nações, na qualidade nacional, bem como todos os indivíduos, obedecem. A lei moral de Deus é a única lei de indivíduos e nações, e nada pode ser governo legítimo, senão aquele estabelecido e administrado com vista a sua manutenção.

 

Proponho agora fazer algumas observações a respeito de formas de governo, o direito e o dever da revolução, etc.1

 

1. As formas particulares de governo estatal devem depender e dependerão da virtude e inteligência do povo.

Quando a virtude e inteligência são quase universais, as formas democráticas de governo são bem adequadas para promover o bem público. Em tal estado de sociedade, a democracia é em grande medida conducente à difusão geral do conhecimento sobre interesses governamentais; e, embora em alguns aspectos menos convenientes, num estado adequado de sociedade, a democracia é em muitos aspectos a forma de governo mais desejável.

Deus, em sua providência, sempre tem dado à humanidade aquelas formas de governo adequadas ao grau de virtude e inteligência entre o povo. Se forem extremamente ignorantes e perversos, Ele os restringe com o cetro de ferro do despotismo humano. Se mais inteligentes e virtuosos, lhes dá o modelo mais ameno de monarquia limitada. Se ainda mais inteligentes e virtuosos, dá-lhes ainda mais liberdade, estabelecendo providencialmente repúblicas para seu governo. Sempre que o estado geral de inteligência permite, Ele os põe a provar o autogoverno e autocontrole, pelo estabelecimento de democracias.

Se o mundo algum dia tornar-se perfeitamente virtuoso, os governos serão proporcionalmente modificados, sendo empregados na exposição e aplicação dos grandes princípios da lei moral.

2. A forma de governo obrigatória é a que seja mais adequada para suprir as necessidades do povo.

Isso se segue como uma verdade manifesta pela consideração de que a necessidade é a condição do direito do governo humano. Suprir essa necessidade é o objeto do governo; e o governo obrigatório e melhor é o exigido pelas circunstâncias, inteligência e moral do povo.

Por conseguinte, em certos estados da sociedade, seria dever do cristão até orar por um despotismo militar e sustentá-lo; numa certa ordem da sociedade, orar por uma monarquia e sustentá-la; e em outros estados, orar por uma república e sustentá-la; e ainda num estágio mais avançado de virtude e inteligência, orar por uma democracia e sustentá-la; se de fato a democracia é a modalidade mais sadia de governo autônomo, o que pode ser colocado em dúvida. É ridículo sustentar a alegação de direito divino para qualquer forma de governo. Aquela forma de governo exigida pelo estado da sociedade e a virtude e inteligência do povo goza necessariamente do direito e da sanção divina, e nenhuma outra a goza nem pode gozar.

3. As revoluções tornam-se necessárias e obrigatórias quando a virtude e inteligência ou a perversão e ignorância do povo as exigem.

Isso é óbvio. Quando uma forma de governo deixa de suprir as necessidades do povo, é dever do povo fazer uma revolução. Nesses casos, é vão opor-se à revolução, pois de algum modo a benevolência de Deus a concretizará. E só por esse princípio que se justifica o que recebe o nome geral de Revolução Americana. A inteligência e virtude de nossos antepassados puritanos fez da monarquia um peso desnecessário; e Deus sempre concede a seus filhos toda a liberdade que estão aptos a desfrutar.

A estabilidade de nossas instituições cristãs devem depender do progresso da inteligência ou virtude geral. Se a nação falhar nesses aspectos, se a inteligência geral, a virtude pública e privada descerem a um ponto em que o autocontrole torna-se praticamente impossível, precisamos voltar à monarquia, limitada ou absoluta; ou ao despotismo civil ou militar; segundo a medida exata do padrão nacional de inteligência e virtude. Isso é tão certo quanto o fato de que Deus governa o mundo ou o fato de que as causas produzem seus efeitos.

Assim, é a maior tolice concebível os cristãos tentarem extirpar governos humanos, quando devem se empenhar em sustê-los de acordo com os grandes princípios da lei moral. E certamente a mais crassa tolice, senão perversão abominável, desdenhar, ou em teoria ou em prática, essas verdades claras, sensatas e universais.

4. Em que casos somos obrigados a desobedecer aos governos humanos?

(1) Podemos render obediência quando o que se requer não implica uma violação da obrigação moral.

(2) Somos obrigados a obedecer quando o que se requer não possui caráter moral em si; de acordo com o princípio de que a obediência nesse caso é um mal menor que a resistência e a revolução. Mas:

(3) Somos sempre obrigados a desobedecer quando a legislação humana contradiz a lei moral ou invade os direitos de consciência.

 

Aplicação dos princípios precedentes aos direitos e deveres dos governos e indivíduos em relação à execução das penalidades necessárias da lei: a supressão de tumultos, insurreições, rebeliões; e também em relação a guerras, escravidão, profanação do sábado, etc.

 

1. E evidente que o direito e dever de governar para a segurança e promoção dos interesses públicos implica o direito e dever de usar quaisquer meios necessários para isso. E absurdo dizer que o governante possui o direito de governar e, mesmo assim, não possui o direito de empregar os meios necessários. Alguns tomam por base a inviolabilidade da vida humana, insistindo que tomar a vida é errado per se, e, é claro, que os governos devem ser mantidos sem que se tome a vida. Outros chegam a afirmar que os governos não têm o direito de recorrer à força física para manter a autoridade da lei. Mas trata-se de filosofia por demais absurda, implicando simplesmente no seguinte: O governante possui o direito de governar enquanto o indivíduo dignar-se a obedecer; mas se o indivíduo recusar obediência, ora, então o cessa o direito de governar; pois é impossível que exista o direito de governar quando não existe o direito de impor obediência. Essa filosofia é, na realidade, uma negação do direito de usar os meios necessários para a promoção do grande fim para o qual todos os agentes morais devem viver. E por mais estranho que pareça, essa filosofia professa negar o direito de usar a força e tirar a vida em apoio ao governo, tomando por base a benevolência, ou seja, que a benevolência o proíbe. Que é isso, senão sustentar que a lei da benevolência exige que amemos sobremaneira os outros, de modo que não possamos usar os meios indispensáveis para garantir-lhes o bem? Ou que devamos amar o todo sobremaneira para executar a lei contra aqueles que destruiriam todo o bem? Que filosofia vergonhosa! Ela desconsidera o fundamento da obrigação moral e de toda a moralidade e religião. Exatamente como se uma benevolência iluminada pudesse proibir a execução devida, íntegra e necessária da lei. Essa filosofia insta de modo impertinente o mandamento, "Não matarás" (Dt 5.17), como proibição de qualquer ato que tire a vida humana. Mas pode-se perguntar: Por que dizer vida humana? O mandamento, no que diz respeito à sua letra, proíbe de modo igualmente completo que se matem animais ou vegetais, tanto quanto homens. A pergunta é: que tipo matar proíbe esse mandamento? Com certeza não o que se refere a todos os seres humanos, pois no capítulo seguinte os judeus foram ordenados a matar seres humanos por causa de certos crimes. Então os dez mandamentos são preceitos, e o Legislador, depois de estabelecer os preceitos, passa a especificar as penalidades que devem ser infligidas pelos homens quando houver violação desses preceitos. Algumas dessas penalidades são morte, e a penalidade pela violação do preceito em consideração é a morte. É certo que o preceito não tinha a intenção de proibir que se tirasse a vida de um assassino. Uma consideração da lei em seu teor e espírito torna muito evidente que o preceito em questão proíbe o homicídio, e a pena de morte é acrescentada pelo legislador à violação desse preceito. Ora, como seria absurdo e impertinente citar esse preceito ao proibir que se tire a vida sob circunstância incluídas no preceito!

Os homens possuem direito indubitável de fazer tudo o que seja claramente indispensável para o máximo bem-estar do homem e, portanto, nada pode, sob hipótese alguma, ser lei, se proibir que se tome a vida humana quando isso seja indispensável para o grande fim do governo. Esse direito é reconhecido em toda a parte na Bíblia e, caso não o fosse, o direito ainda existiria. Essa filosofia a que me oponho pressupõe que a vontade de Deus cria a lei e que não temos o direito de tomar a vida sem uma autorização divina expressa. Mas os fatos são que Deus apresentou, pelo menos aos judeus, uma autorização e ordem expressa de tomar a vida no caso de certos crimes e, caso não o tivesse feito, seria dever fazê-lo sempre que o bem público o exigisse. Deve-se lembrar que a lei moral é a lei da natureza e que tudo o que seja claramente exigido para a promoção do máximo bem do ser é legítimo e correto.

A filosofia da qual falo dá muita ênfase àquilo a que chama direitos inalienáveis. Ela pressupõe que o homem possui o direito à vida, num sentido tal que não pode tê-la confiscada por causa de um crime. Mas o fato é que não há direitos inalienáveis nesse sentido. Não pode haver direitos desse tipo. Sempre que algum indivíduo, pela comissão de um crime, entra numa relação tal com o interesse público, que sua morte seja um meio necessário para garantir o máximo bem público, sua vida é confiscada, e executar esse confisco é dever do governo.

2. Ver-se-á que os mesmos princípios são igualmente aplicáveis a insurreições, rebeliões, etc. Enquanto o governo estiver correto, é seu dever; e enquanto for direito e dever, porque é necessário como meio para o grande fim almejado pela benevolência, deve ser tanto direito como dever do governo, e de todos os indivíduos, empregar quaisquer meios indispensáveis para supressão de insurreições, rebeliões, etc, bem como para a devida administração da justiça na execução da lei.

3. Esses princípios nos guiarão na delimitação do direito e, é claro, do dever dos governos em relação à guerra.

Observem que a guerra, para ser de algum modo virtuosa ou menos que um crime de magnitude infinita, deve ser não só honestamente entendida por aqueles que nela se empenham como algo exigido pela lei da benevolência, mas também por eles travada com uma preocupação sincera com a glória de Deus e o máximo bem-estar do ser. Que a guerra, em alguns casos, é exigida pelo espírito da lei moral, não deve haver dúvida racional, uma vez que Deus às vezes a exige, o que Ele não poderia fazer, se não fosse exigida para o máximo vem do universo. Em tais casos, se aqueles ordenados a travar uma guerra tivessem intenções benevolentes ao travá-la conforme Deus a tivesse ordenado, seria absurdo dizer que teriam pecado. Os governantes são representados como ministros de Deus para executar a ira contra o culpado. Se, na providência de Deus, Ele considerasse dever destruir ou censurar uma nação para a própria glória dEle e para o máximo bem do ser, Ele poderia, sem dúvida, ordenar que fosse castigada pelas mãos dos homens. Mas em caso algum a guerra deixa de ser crime mais que horrível, a menos que seja vontade clara de Deus que se realize e a menos que seja de fato travada em obediência à sua vontade. Isso diz respeito a todos, tanto governantes como indivíduos, que se envolvem numa guerra. A guerra egoísta é homicídio por atacado. Quando uma nação declara guerra ou as pessoas se alistam ou de algum modo tramam ou incitam voluntariamente a declaração ou realização de uma guerra, sob quaisquer outras condições que não as já especificadas, isso implica culpa de homicídio.

É difícil conceber mais abominável e demoníaca máxima que "nossa terra, certa ou errada". Recentemente, essa máxima parece ter sido adotada e confessada em relação à guerra dos Estados Unidos com o México. Alguns parecem supor que é dever dos bons indivíduos simpatizar com o governo e apoiá-lo na realização de uma guerra em que se envolveu de modo injusto e a que se devotaram tendo por base o fato de que, estando iniciada, é preciso que seja travada, como o menor de dois males. A mesma classe de homens parece ter adotado a mesma filosofia com respeito à escravidão. A escravidão, conforme existe neste país, eles reconhecem ser indefensável com base no direito. Trata-se de grande mal e grande pecado, mas precisa ser mantida como o menor dentre dois males. Ela existe, dizem, e não pode ser abolida sem distúrbios nas relações amigáveis e na união federal dos Estados, assim a instituição deve ser mantida. A filosofia é a seguinte: a guerra e a escravidão conforme existem nesta nação são injustas, mas existem, e mantê-las é dever, porque sua existência, sob as circunstâncias presentes, é o menor de dois males.

Nada pode santificar algum crime, senão o que não o considere crime, mas virtude. Mas os filósofos cujas opiniões estou examinando devem, se forem coerentes, tomar por base que, uma vez que a guerra e a escravidão existem, embora seu início tenha sido injusto e pecaminoso, mas uma vez que existem, não é crime, mas virtude, mantê-las como o menor dentre dois males. Mas pergunto: Para quem são o menor de dois males? Para nós ou para os seres em geral? Os menores de dois males presentes ou dois males finais? Nosso dever não é calcular os males tendo só a nós mesmos como referência ou a esta nação e aos diretamente oprimidos e injuriados, mas olhar o mundo além e o universo, inquirindo quais os males resultantes e prováveis ao mundo, à Igreja e ao universo decorrentes da declaração e realização de tal guerra e do apoio à escravidão por uma nação que professa o que professamos -- uma nação que se gaba de liberdade; que puxou a espada e a banhou em sangue para defender o princípio de que todos os homens têm direito inalienável à liberdade; que eles nascem livres e iguais. Tal nação que proclama tal princípio e luta em sua defesa pisa com pés orgulhosos o pescoço de três milhões de escravos esmagados e prostrados! Que horror! Isso seria um mal menor ao mundo que a emancipação ou mesmo que o desmembramento de nossa união hipócrita! "Ó vergonha, onde está o teu rubor?" A realização da guerra injustamente travada, um mal menor que o arrependimento e a restituição! E impossível. A honestidade é sempre e necessariamente o melhor plano de ação. As nações estão sob as mesmas leis que os indivíduos. Caso errem, é sempre dever e honrado arrependerem-se, confessarem e fazerem restituição. Adotar a máxima, "nossa terra, certa ou errada", e simpatizar com o governo na realização de uma guerra travada injustamente deve implicar a culpa de homicídios. Adotar a máxima "Nossa união, mesmo que com escravidão perene", é uma abominação tão execrável, que a mente do justo não consegue pronunciá-la sem indignação.

4. Os mesmos princípios se aplicam à profanação governamental do sábado. O sábado é uma instituição divina clara, fundamentada nas necessidades dos seres humanos. A letra da lei do sábado proíbe todo trabalho de todo tipo e sob todas as circunstâncias nesse dia. Mas, conforme se disse numa aula anterior, o espírito da lei do sábado, sendo idêntica ao da lei da benevolência, às vezes requer a violação da letra da lei. Tanto governos como indivíduos podem e devem fazer no sábado tudo o que seja claramente exigido pela grande lei da benevolência. Mas nada mais, em absoluto. Nenhuma legislação humana pode anular a lei moral. Nenhuma legislação pode tornar correto ou legítimo violar algum mandamento de Deus. Todos os decretos humanos que requeiram ou sancionem a violação de algum mandamento de Deus não são apenas nulos e vãos, mas usurpação e invasão blasfema da prerrogativa divina.

5. Os mesmos princípios aplicam-se à escravidão. Nenhuma constituição ou decreto humano pode, em hipótese alguma, ser lei, se reconhecer o direito de um homem ser escravo de outro, num sentido que implique egoísmo da parte do senhor. O egoísmo é errado per si. É, portanto, sempre e inalteravelmente errado. Nenhum decreto, humano ou divino, pode legalizar o egoísmo e torná-lo correto, sob circunstância alguma. A escravidão ou qualquer outro mal, para ser um crime, deve implicar egoísmo. Deve implicar uma violação do mandamento: "Amarás a teu próximo como a ti mesmo" (Mt 19.19). Se implicar uma brecha no mandamento é invariável e necessariamente errado, e nenhuma legislação nem algo mais pode torná-lo correto. Deus não pode autorizá-lo. A Bíblia não pode sancioná-lo, e se Deus e a Bíblia fossem sancioná-lo, não seria legítimo. Uma vontade arbitrária de Deus não é lei. A lei moral, conforme vimos, é tão independente de sua vontade quanto a necessária existência própria dEle. Ele não pode nem alterá-la nem repeli-la. Ele não poderia santificar o egoísmo e torná-lo correto. Também nenhum livro pode ser recebido como autoridade divina se sancionar o egoísmo. Deus e a Bíblia citados para sustentar e santificar a posse de escravos num sentido que implica egoísmo! E blasfemo! Que a posse de escravos, conforme existe neste país, implica egoísmo, pelo menos em quase todas as instâncias, é por demais evidente para necessitar de prova. O caráter pecaminoso da posse de escravos e da guerra em quase todos os casos em que os termos escravidão e guerra são usados em seu significado popular, parecerá irresistível se considerarmos que o pecado é egoísmo e que todo egoísmo é necessariamente pecaminoso. Privar da liberdade um ser humano não culpado de crime algum; roubá-lo de si mesmo -- seu corpo -- sua alma -- seu tempo e suas posses para promover o interesse de seu senhor, e tentar justificar isso com base em princípios da lei moral! É o maior absurdo e a mais revoltante perversidade.

 

1 Na edição de 1878, aqui começa uma nova aula intitulada: Governo Humano.

 

 

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